(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

26.12.13

Insuficiente e incompleta

Insuficiente e incompleta

- Sinto a minha vida incompleta e insuficiente, percebes?-
Queixou-se, com alguma tristeza, nesta quadra natalícia que tem o condão de fazer com que as pessoas se analisem um pouco mais profundamente.
Por uns segundos fiquei sem palavras, sem saber o que dizer...

Quando constatei que os correios, hoje, ainda estavam fechados e eu não podia enviar mais uns livros que me encomendaram, dirigi-me ao carro. E ela apareceu do nada, a desejar-me as Boas Festas.
- Parabéns! Adorouj o que escreve! E sabe? Recebi o seu último livro de prenda, ofereceu-me a sua sogra!- exclamou, com um sorriso rasgado.
E eu, feliz, agradeci o elogio e percebi que talvez esteja no bom caminho do meu sucesso pessoal: encantar e inspirar...

O meu silêncio durou poucos segundos.
- Sabes uma coisa? A minha vida também é incompleta e insuficiente. Mas achas que o constato com tristeza?? Nada disso! Dou graças por ter a consciência do facto. É essa insuficiência e incompleitude que me faz batalhar todos os dias por me completar e construir; por preencher a minha vida com cada pecinha de aprendizagem, dádiva e emoção!-
Não sei que efeito tiveram as minhas palavras em quem me ouvia mas, para mim, foram uma nova peça do puzzle que me compõe. Que fantástico entendimento, este de ser insuficiente e incompleta! Que magnífica sabedoria este conceito nos pode aportar. Cada dia traz algo novo à nossa construção pessoal. Cada momento pode ser um novo degrau no caminho da nossa ação positiva, dando à nossa vida uma compleitude maior.
O que desejo agora? Que a minha existência seja uma eterna insuficiência incompleta, até ao fim dos meus dias, para que possa, assim, continuar a colocar a minha energia e criatividade ao serviço dos valores que mais me inspiram.
Realmente tudo depende da maneira como olhamos! Que as nossas incompleitudes e insuficiências sejam de facto o motor da mais bela evolução!

Ana Amorim Dias


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Peru do ano que vem

Peru do ano que vem...

O almoço do dia de Natal é sempre em casa da sogra. A canja, o bacalhau no forno e, claro, o belo do peru, inchado de tanto recheio.
- Ana!?-
- Oups! Já parei, já parei!- estava a tirar fotografias de louca, a atacar o dito bicho, e desculpei-me pelo abuso.
- Para o ano és tu!-
- Eu? Sou eu o quê?- sei muito bem que o que as sogras dizem é lei, nem vale a pena argumentar...
- Então, para o ano és tu a cozinhar o peru! A tradição tem que seguir!-
Fingi que não ouvi. Desconversei, fomentei outras conversas e esforcei-me para que a conversa morresse ali, mais finada que o peru que jazia sobre a mesa. De nada serviu: com as sogras não se brinca!
- Ouviste? Tens que aprender a fazer o peru, Ana, senão a tradição perde-se...-
A menina Glorinha tem razão, por mais que me custe a admitir. Tenho que aprender a temperar, rechear e cozinhar o bicharoco, no forno a lenha, se quero fazer valer a pretensão de ser uma matriarca capaz! Afinal, tenho feito coisas bem mais difíceis e não costumo sair-me mal.

No meio das conversas dos alegres comensais e da música de Natal que se desprendia da televisão, perdi-me nos pensamentos. Nunca estamos completos nem totalmente instruídos. Se queremos tornar-nos na pessoa que sonhámos, isso implica aceitar uma ajudinha de quem se propõe a ajudar-nos. "Por isso, peru do ano que vem: desculpa lá mas és meu!"

Ana Amorim Dias

Feliz Natal

Feliz NATAL!!

Estava a ver velhas fotografias e esta prendeu-me a atenção. Há uma certa pitada de inocência corajosa a salpicar a atitude. Digitalizei-a e guardei-a para a próxima vez que precisasse de salvar o mundo...

O pobre parece um saco de boxe. Leva socos por todos os lados. Está espancado, mutilado, e não me parece justo!
"Época de hipocrisia", dizem muitos; "época odiosa de cinismo, escravidão social e discrepâncias atrozes", atacam cegamente, como se a razão dos males do mundo fosse mesmo o Natal.

Mas que raio? Ainda não perceberam que o Natal não são os presentes nem a obrigatoriedade de os dar? Anda não perceberam que esta época existe porque há milhões de pessoas que não sabem ser carinhosas e precisam de um estágio anual para ver se aprendem? É assim tão difícil entender que se trata de celebrar a família, a generosidade, o amor ao próximo?? É assim tão impossível readaptar tradições, mantendo o brilho mágico da única altura do ano em que só a humanidade importa?

Só me apetece dizer palavrões, a sério, mas o coração acalma-se-me ao recordar a chegada dos meus filhos esta manhã à minha cama.
- Porque é que és sempre tão quentinha, mãe? - perguntou o Tomás, chegando-se mais a mim.
- A mãe tem um brilho!- explicou-lhe o João.
- És uma Deusa-Sol, mãe! - determinou o Tom, secundado pelo irmão:
- Sim, isso, uma Deusa-Sol!
Abracei-os com força:
- Obrigada Pai Natal, obrigada vida!!! Vocês são as melhores "prendas do mundo"!! Ah, e obrigada Ricardo!-
Riram-se e aninharam-se mais ainda na Deusa-sol das suas pequenitas vidas.

Natal é isto: calor humano, amor. E ele pode (deve) ser dado sem estribeiras tanto a quem faz parte de nós como a quem nunca vimos. Mas para isso precisamos de nos surpreender connosco: olhar para dentro e partir na expedição de resgate da nossa esperança, dos nossos sonhos, do nosso otimismo, da nossa capacidade de amar para além do explicável! Quando nos decidirmos a fazê-lo, não só o Natal voltará a fazer sentido, como todos os dias do ano serão mágicos... Acreditem porque eu sei! Parti há muitos anos, na minha nau, decidida a salvar o mundo. Talvez nunca consiga, mas jamais deixarei o leme da minha vontade andar à deriva!

Agora sim, desejo a todos um bom Natal!

Ana Amorim Dias

Mensagens

Mensagens

Fui incumbida de escrever um poderoso e inspirador texto para um pequeno vídeo.
Fi-lo em inglês. Tanto por ser compreensível a todos os envolvidos como pelo facto de, talvez devido à influência dos épicos cinematográficos, este tipo de escrita me sair melhor nessa língua.
O problema, como de costume, chegou com as traduções...
- Não, não, não!- comecei a reclamar logo de manhã.-Há que respeitar o sentido, mais do que as palavras! O importante é a mensagem. E a estética das poucas palavras. Aqui o menos é mais. A eficiência está nas frases curtas. Lembrem-se que a arte jamais se encontra no óbvio!-
Debati-me como pude, para defender o meu material, e consegui.

A arte não costuma andar de mãos dadas com o óbvio. A arte tem que ser sentida para além da razão. E é assim que a mensagem mais profunda encontra o caminho da sua transmissão.

Mais uma vez, no banho, fiquei a pensar; a meditar sobre estes dias em que as mensagens óbvias, de bons Natais e felizes anos novos, se desprendem da arte e da transmissão poderosa do que sentimos cá dentro. E então, enquanto a água quente continuava a cair sobre mim, reforcei a crença de que a eficiência de toda a mensagem está no ato mais simples: no sentir o que se emana.

Ana Amorim Dias

Estupidamente simpáticos

Estupidamente simpáticos

Saí do carro à pressa depois de um estacionamento à campeã de rali. Vinha com uma urgência enorme de começar a escrever.
O tema foi fermentando ao longo dos últimos dias: porque é que as pessoas não são mais simpáticas? Porque é que eu, que acho que sempre o fui, agora estou muito mais?

- Oh Ana, até há pessoas que dizem: "hum, aquela pessoa é demasiado simpática, há qualquer coisa que não está bem..." - dizia-me uma amiga, ontem ao jantar, quando lhe comentei o facto.

Se calhar é isso. Há um certo medo em revelar toda a simpatia. Há receio de nos entregarmos aos outros. Porque os mal entendidos existem e porque essa entrega implica uma energia que muitos não estão dispostos a gastar.

Estou muito mais simpática, agora. A Ana escritora está-se a borrifar para os olhares desconfiados dos desconhecidos a quem sorri. A Ana caçadora de histórias sabe-se verdadeira nesta simpatia brutal, incomodativa talvez, que espalha por quem apenas conhece. Sim, porque os amigos, esses, aturam-nos tudo com a sapiência do amor.
Dou comigo a pensar: "eh pá, isto não será demais?" E respondo-me: "Não sejas estúpida, tu és escritora e podes. Além do mais o que é sincero e bom nunca pode ser demais."

Estava, há pouco no banho, quando novos factos se somaram à divagação. Constatei que todos os meus novos (e antigos) amigos motards são de uma simpatia para além de explicações.
O Marco e o José, por exemplo, conheci-os na apresentação do "Olho Ubíquo" no moto clube de Faro. A conexão foi imediata. Partilhámos apenas alguns minutos das nossas vidas, mas sei que da próxima vez que os vir a simpatia vai estar lá. Inteira. Soberba.
Tenho descoberto que esta "estirpe" da estrada tem um modus vivendi muito próprio. Os motards entregam-se em simpatia e conexão verdadeira porque sabem tudo sobre a emoção. E sabem o valor de cada vida humana. Quando se entregam a abraços viris, apenas cinco minutos depois de conhecerem alguém, fazem-no com a força do pacto: "tu és meu irmão". E isto enternece-me e faz-me dar-lhes um valor que jamais saberei colocar em palavras...

Faz-nos falta simpatia. Faz-nos falta paixão pela vida. Faz-nos falta perceber o valor de cada vida que se cruza connosco. Senão pela humanidade, pelo menos por vocês, façam como os escritores loucos e como os príncipes das duas rodas: sejam estupidamente simpáticos, pelo menos de vez em quando.

Ana Amorim Dias


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Queres normal ou à bruta?

Queres normal ou à bruta?

- João? Vou fazer-te uma pergunta.- cheguei à sala já com o banho dele a correr e a roupa toda escolhida.
- Diz mãe...- respondeu, sem me ligar muita importância, dividido entre as festinhas dadas ao gato e a revista que estava a ler.
- Vais querer normal ou à bruta??-
- Hã!?! - esbugalhou um pouco os olhos e endireitou-se, mas não desistiu sem dar luta,- não sei do que falas, mas deixa-me só acabar esta página.-
Eu mal podia crer em tão grande e convicto descaramento.
- Pronto, é à bruta!!!- eu andava a mandá-lo para o banho há dois dias e a resposta era sempre a mesma: "Espera só um bocadinho". Pus o meu ar número um de louca (o usado para persuadir os meus filhos) e agarrei-o pelo braço.
Dez segundos depois a casa estava a mergulhar numa paz bem lavadinha.

Esta manhã, quando se foi deitar na minha cama, enroscadinho ao meu corpo, não resisti a perguntar-lhe:
- Porque é que gostas de mim, baby?-
- Ora, porque és minha mãe.-
- Então e se não fosse?-
- Oh mãe... Já me estás a deixar "esbandalhado"!-
Por momentos assustei-me, pensei que fosse pelas minhas perguntas, mas afinal era o edredom que, por eu me ter mexido, se tinha movido do sítio.
- Não respondes?-
- Se não fosses minha mãe, se eu gostava de ti? Claro! Nem sei porque é que perguntas!-
- Olha lá...-
- Diz.- percebi no tom de voz que já estava a ficar sem paciência.
- E o que é que não gostas em mim?-
- Não gosto quando te zangas: ficas assustadora!-

A maneira engraçada como ele pronuncia os "ss" ficou-me a rebolar nos ouvidos. E percebi que, às vezes, temos que "esbandalhar" quem amamos com a questão "vais querer normal ou à bruta?" porque só assim é que lhes lavamos bem o feitio!

Ana Amorim Dias

De amor e perdão

De amor e perdão

- Põe, mãe!-
- Estás louco, não ponho nada! O que é que as tuas avós vão dizer?-
- Não importa, estás linda! Passa para cá o IPad, se não pões tu, ponho eu!-
Rendi-me. Tenho aprendido que é de onde menos se espera que boas opiniões nos chegam.

Ao serão, enquanto a curiosidade pelo aumento dos "gostos" me perturbava o trabalho criativo, fiquei a olhar, intrigada, para a minha imagem. Não fumo charutos mas, como imagem promocional para o novo livro, a coisa até faz sentido.
"Quem és tu, afinal? Que ar misterioso é este?"
A vida tem muito mais interesse quando nos descobrimos como as primeiras pinceladas de uma enorme pintura; como as primeiras páginas de um livro. Sim, a vida só é mesmo uma aventura fantástica quando temos a capacidade de encarar cada acontecimento como algo que nos desafia, transforma e constrói. Não sabemos o aspeto final da obra "nós mesmos", mas temos que aprender a aceitar que não somos obra acabada: somos a soma de tudo o que nos acontece e de todas as nossas reações. E temos a obrigação de a criar da mais inesquecível maneira, senão pelos outros, por nós! Porque merecemos o melhor. Merecemos ser melhores. Merecemos viver com o encantamento de quem inspira, de quem ama, de quem perdoa tudo para todo o sempre.
E então, enquanto pensava isto tudo, lembrei-me dos filhos que não falam com os pais; lembrei-me dos amigos desavindos que já não recordam as razões do fim da amizade; lembrei-me do estúpido orgulho que impede as pessoas de recomeçar afetos que nunca acabaram.
Não, isto não é o espírito natalício: é a voz da razão, de mãos dadas com a do coração, que sabe o ano inteiro o que realmente importa.
Não me vejo especialmente bonita, nesta fotografia, mas vejo-me com a beleza de quem sabe que a vida é a construção contínua da nossa personagem real; vejo-me com a sensualidade mística de quem aprendeu muito bem as mais importantes lições. De amor e perdão.

Ana Amorim Dias

O próximo

O próximo

Duvido muito que seja coincidência. Acho que é a sequência lógica do funcionamento criativo. Se é, claro, que o funcionamento criativo se rege por algum tipo de lógica.
Mas deixem-me expor os factos e defender o meu caso.

Iniciei, finalmente, uma excursão exaustiva pelas mensagens privadas do Facebook. Tinha urgência em agradecer a quem me trouxe palavras simpáticas. Tinha a obrigação de começar a dar resposta às encomendas; saber mais sobre os destinatários para poder, assim, escrever dedicatórias sentidas e com sentido. Percebi que, talvez, esta missão me leve alguns dias, até porque os outros trabalhos (e os catraios de férias) também precisam de toda a minha atenção. Comecei por uma ponta e lá fui cumprindo o meu papel, sorrindo de cada vez que o telefone tocava com uma nova encomenda.

Voltei à minha secretária como quem aterra do espaço. O corpo continuava ali mas o pensamento tinha-se escapado, indomável, para o próximo livro. Pela primeira vez em meses, percebi o que aí vem. Há personagens demasiado fortes a povoar os meus dias; há a necessidade de escrever sobre a personagem que melhor conheço e sobre a qual ainda nenhum livro escrevi. Sim, tornou-se tudo muito claro: no próximo não vou inventar, não faria sentido. Já sei sobre o que vou escrever e como o farei.

Regressei ao meu corpo e à minha secretária. Olhei com uma satisfação orgulhosa para o encantador "Olho Ubíquo" e senti-me feliz. "Em breve terás uma nova companhia", disse baixinho, enquanto apagava as luzes e me preparava para entrar no mundo dos incontroláveis sonhos.

Ana Amorim Dias


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Percursos

Percursos

Foi o senhor que, ao ver-me de braço muito esticado em pleno restaurante, se ofereceu para nos tirar uma fotografia.
- Desculpem a indiscrição, posso perguntar uma coisa?-
- Claro!- respondi, sorridente.
- Os senhores não saltaram por acaso daquela televisão ali, ontem, para esta mesa aqui, hoje?-
- Sim, era a que estava mais perto!- raramente me sai só um "sim" ou um "não", nunca entendi bem porquê.
- Obrigado. Eu tinha a certeza, mas eles não acreditavam.- queixou-se, a olhar para os colegas com um ar triunfante.

- É para a estacão de Entrecampos, por favor.- pedi ao taxista, enquanto ele colocava a mala na bagageira.
- Vai para Sul, não é minha senhora?-
- Sim, vou.- fiquei a pensar se saberia os horários de cor ou se me topou a pinta de moura.
- Ui, agora três horas de viagem!! É muito cansativo, ir para tão longe!- exclamou com uma enorme veemência.
Fiquei sem saber o que responder. Mas, como não me apetecia começar a divagar tão cedo nem ia deixá-lo a falar sozinho, limitei-me a um "Pois".

O que para uns é uma enorme viagem, para outros é um pulinho. O que para uns é tremendamente distante, para outros é logo ali. O mundo de cada pessoa tem um tamanho tão personalizado quanto os seus horizontes, expetativas e experiências de vida.
Gosto de ver cada percurso como mais uma página em branco sobre a qual há que escrever. Não importa a distância, nem o transporte escolhido; não interessa a proveniência, o destino ou a velocidade; não é relevante ao que fomos nem ao que estamos a regressar. Porque o encanto de cada percurso está no facto de ser mais uma ferramenta para a nossa construção. É por isso que estou absolutamente convicta de que, quer seja um salto do ecrâ para a mesa do restaurante, ou uma expedição de meses, é no movimento do percurso que a mais encantadora viagem se dá: aquela em que vamos escrevendo a história da nossa vida.

Ana Amorim Dias

Importadora de heróis

Importadora de heróis

- Este cabelo vai precisar de um "arranjo"- disse ela com um ar um pouco desesperado.
- Claro. Precisa sempre, eu é que nunca tenho paciência!-
Ouvi as gargalhadas das minhas amigas, lá fora, e desejei escapar-me à maquineta quente que fabrica caracóis, para me juntar à festa. Mas, claro, tive algum juízo e lá me deixei ficar.
Olhei para o lado: a jovem que estava a ser maquilhada seria a Erica? Não perdi tempo.
- É a Erica, não é?-
- Sim.- Um sorriso rasgado, genuíno, puro.
Em cinco minutos estavamos a falar sem parar, no meio de gargalhadas, com a maquilhadora e a cabeleireira à mistura.
- E a Ana o que faz?- perguntou uma delas.
- Sou importadora.- Saiu-me sem pensar.
- Importadora? De quê?-
Peguei no iPhone e mostrei uma fotografia do Eric.
- Importadora de heróis.- exclamei com ar trocista.
Olharam e espantaram-se.

No fim do programa, quando fui buscar as minhas coisas ao camarim, passei pelas magas da beleza e agradeci-lhes imenso a doçura e competência com que me receberam.
Não sou importadora de heróis. A minha função é muito mais bela e poderosa que isso, creio: sou alguém que consegue ver heróis por todos os lados; alguém capaz de fazer com que todos se sintam, à sua própria maneira, heróicos.

Ana Amorim Dias

Maus presságios e bons augúrios

Maus presságios e bons augúrios

O tempo não era muito, mas eu não quis pisar no acelerador.
- Não, não! Não vou mais depressa, já viste que mau presságio seria, se apanhasse uma multa mesmo antes da primeira apresentação da tua biografia?-
- Porque têm as pessoas essa mania, Ana?-
- Qual?-
- De inventar travões. Não há porque inventar travões! Os maus presságios são uma invenção estúpida dos receosos.-
- E os bons augúrios? Como os vês?-
- Sim, esses podemos dar-nos ao luxo de ter. Lembra-te sempre de algo: duvidar é perder o controle. Fica longe de tudo o que te faça duvidar de ti, especialmente se fores tu a inventá-lo. Parece-me óbvio, não?
- E lógico!-

Nem maus presságios, nem bons augúrios. Confiar e não perder o controle. Assim tudo corre bem.

Ana Amorim Dias




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Promessas

Promessas

Andava a prometê-lo há meses. Aquele jogo no Sul de França, nos matraquilhos perros da casa do Bernard, nem devia ter contado (quem está a ler o livro vai perceber do que falo).
Prometi ganhar-lhe. E cumpro sempre as promessas. Ganhei. A solo e a pares.

- Não, não! Assim não vale, Ana!-
- O quê?-
- Os golos de meio campo não contam!-
- Só podes estar a gozar! Que batoteiro!-
- É assim: golo de meio campo não conta e quem marca depois fica com dois golos.-
- Está bem, ganho-te na mesma!-
E o primeiro jogo, que ganhei com golos de meio campo, ficou desclassificado.
- Então vamos lá!-
- Sim, mas aviso-te que as tuas regras não te vão salvar!-
Ganhei o jogo seguinte, também. E depois ganhou ele. Não vou dizer que o tenha permitido, para lhe salvar a face. Ganhou e pronto.
Quem perdeu, a meu ver, foram os clientes do Piratas, porque a gritaria foi tão grande que não sei como não fugiram assustados.

Continuo a dizer que ganhar sabe bem mas, bem melhor que isso, é saber estar à altura dos desafios. E cumprir promessas jamais feitas em vão.

Ana Amorim Dias


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Cem por cento e mais duzentos

Cem por cento e mais duzentos

O João adormeceu no sofá e eu levei-o para a cama. Subi as escadas com ele ao colo sem perceber bem como o estava a conseguir fazer. Eram quase três da manhã. Outra vez.

E hoje o telefone tocou às oito e pouco. Ameacei de morte quem teve a infeliz ideia de ligar tão cedo, a um sábado. Nem sequer tentei voltar a adormecer; a irritação não permitiria.

O almoço terminou e mal comi. Não tinha fome. Só sono e uma nuvem espessa a trespassar-me o cérebro.

"I'm doing the best i can, yes i'm doing the best i can!", cantavam no rádio do carro esta manhã. Estarei mesmo a fazer o melhor que posso?

Continuei insuportável durante quase todo o dia. Sim, tenho sono e o cérebro meio estafado. E consigo entender os motivos. O que não percebo é porque é que este mau feitio tomou conta de mim. Estarei a fazer o melhor que posso? Mesmo?

Fui varrer. Estava a precisar de um tipo de ação ritmada e humilde que me permitisse ordenar a cabeça. Que neura! Dou tudo por tudo e mesmo assim não basta? Escrevo de corpo vibrante e com a alma inteira. Entrego a intensidade, a loucura, a emoção. Faço correr as palavras com a mesma beleza com que corre um puro sangue numa praia deserta. Ou pelo menos tento. But am i doing the best i can?

"Devia sair uma lei que obrigasse todas as apresentações artísticas a estarem de sala cheia", pensei, "podia ser através de requisição civil ou de qualquer outro expediente, mas devia ser assim!" Pronto, saiu. Agora entendo perfeitamente a minha angústia e mau humor. Detesto falar para pouca gente mas, ao mesmo tempo, isto faz-me valorizar mais ainda quem aparece e me acompanha. Há uma certa injustiça na entrega absoluta a qualquer arte: passa-se tempo demais a dar quase tudo para obter quase nada.
"Então, Ana?? O que é isso?? Escrever é o teu mundo, o teu alimento; não devias precisar de mais nada!!" Assim que este pensamento chegou, tudo começou a mudar. Pousei a vassoura e pensei que dar cem por cento não chega: é preciso dar cem por cento e mais duzentos!
E garanto-vos que acabo de tomar a mais firme decisão: na apresentação desta noite, terei a energia a trezentos... mesmo que esteja a falar só para vinte.
Yes i'm doing the best i can!
I'll keep doing the best i can!

Ana Amorim Dias

Inspiradora ventania

Inspiradora ventania

Um encontro marcado para as oito da manhã? A sério? Depois de uma noite tão longa, intensa e emocionante como a da apresentação do livro em Lisboa? Depois de semanas e semanas de imenso trabalho em tantas frentes diferentes? Onde é que eu tinha a cabeça? Bem, mas era a única hipótese possível para conhecer um amigo de um amigo que achou que este encontro poderia ser interessante. E foi.
Mas agora estou cheia de sono. E de pressa. E a pensar na interminável lista de coisas que os próximos dias me reservam. "Este ano, preparar o Natal vai ser um passeio no parque", penso, em modo de consolação.

- A Ana é uma força da natureza!- explicava, ontem, a minha homónima Ana Amorim, a uma amiga sua.
Eu ri-me. Oiço-o com frequência e dito com tanto carinho que suspeito que seja verdade. Ri-me porque o que talvez poucos saibam é que as pessoas assim, vistas como vulcões, furacões ou ventanias, lutam os dias inteiros. Penso que deve existir uma certa predisposição genética para se "levar tudo à frente", mas o que tenho a certeza é que a força também se constrói. A capacidade de ver mais além, de esperar, de lutar por encantar, de trabalhar sempre e não desistir nunca, tem que ser uma constante. As dúvidas, receios, ansiedades e cansaços têm que se deixar guardados no espaço mais pequeno e oculto que encontrarmos em nós. O pessimismo deve ser, a todo o custo, esmagado e a noção épica da nossa missão jamais se pode perder.

Quando o despertador hoje tocou, imaginei como seria bom esquecer tudo e render-me à necessidade de ficar deitada na cama, mas o motor da caçadora de histórias soube ronronar mais alto e lá fui, como uma inspiradora ventania que se vai levantando para abraçar o novo dia.

Ana Amorim Dias



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Aprender

Aprender

Começo a habituar-me a estas situações. Estou na minha vidinha e, de repente, como que por magia, vejo-me rodeada de pessoas fantásticas, num ambiente boémio e artístico que me preenche por completo.
Ontem conheci, finalmente ao vivo, uma talentosa e incrível mulher que já considerava amiga.

- Era isto que eu lhe dizia no outro dia, Isabel...- exclamei ao observar o vida pulsante que o seu olhar irradiava.-
- O quê?-
- Que só quem ama o que faz consegue possuir esse brilho no olhar que a Isabel está a ter neste preciso momento. Este brilho, sempre que o vejo em alguém, deixa-me maravilhada e feliz!-
- Ohh Ana, tão querida!-

É verdade: o brilho dos outros olhares maravilha-me sempre! Fico com a sensação de que são mestres, mentores prontos a encaminhar-nos para planos mais elevados.

- Sabes o que foi incrível ontem?- perguntou-me o Eric há pouco.
- Tudo?-
- Percebi no Luiz um talento e experiência tão grandes que fiquei com a certeza que posso aprender muito com ele!-
Maravilhei-me outra vez.

Posso andar sempre com o brilho no meu olhar, mas quero aprender a ter mais. O Eric é um fotógrafo soberbo mas sabe onde ir beber mais talento. Será isto sabedoria? Será que tudo se pode continuar a aprender? Sempre? Sei que sim. Sei que enquanto nos mantivermos atentos e sequiosos de vida, podemos apreender mais para saber, depois, transmitir melhor. Sei que enquanto sonharmos melhorar-nos, a sorte se encarrega de colocar no nosso caminho quem nos possa inspirar.

Ana Amorim Dias


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