(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

20.10.13

Marcar pontos

Marcar pontos

Assisti uma única vez aos treinos de futebol do Tomás. No final disse-lhe:
- Meu amor? Não tens jeitinho absolutamente nenhum! Devias mudar de desporto...-
Apesar de me terem chamado a atenção para tentar não colocar os factos de uma forma tão crua, tenho a certeza que agi bem. Se ele não servia para aquilo não era melhor confirmar-lhe uma certeza que ele se calhar até já tinha?

- Mãe... ok, eu deixo-te assistir ao jogo... Mas por favor: não comeces com as tuas loucuras!!-
Estou sentada a ver o jogo. O mais sossegadita que posso. Acabei de receber o sorriso rasgado de um filho feliz, veloz e ágil que, para o basquete, já tem jeito.
E não posso impedir-me de pensar que a frontalidade mais crua é, muitas vezes, a que vem a potenciar que mais e melhores pontos se marquem.

Ana Amorim Dias

Terapia de choque

Saí esta manhã de casa e lá estavam eles: a cheirar tudo com uma curiosidade espantada que o barulho dos meus tacões assustou. Embora tenha ficado com pena por não ter conseguido captar a imagem cómica dos foragidos porquitos, agradeci-lhes em silêncio a visita... É que foi ela que me potenciou um poderoso regresso ao passado.

Passou-se há muitos anos. Quando eu era ainda uma citadina criatura, completamente inadaptada às duras realidades campestres.
- Vamos capar porcos, queres vir?- perguntou o avô João.
Passei muitos anos a tentar perceber as razões daquele meu "sim". Teria sido para o tentar impressionar? Teria sido obra da constante vontade de perceber como tudo funciona? Ou apenas a consciência do enorme poder das terapias de choque?
Momentos depois estava dentro das pocilgas com eles. O Ricardo a agarrar o porco; o avô a "tratar" do assunto e eu a dar assistência. A certa altura, no meio de desinfeções, cortes e guinchos, o avô João, por não ter mais onde o colocar, estendeu-me o órgão ovalado e ainda quente que, por instinto, recebi na minha mão.
Poderia deter-me aqui e fazer uma série de analogias interessantes quanto ao facto de se conseguir ter túbaros na mão. Mas não. O importante foi saber deter-me naquele momento específico (que até poderia ter sido traumático) e conseguir abraçar todo o seu grande valor mesmo sem o entender por completo.

Hoje, tantos anos depois, vejo como a menina da cidade se soube adaptar aos desafios do campo e compreendo a razão de ser daquele meu "sim". É que eu, mesmo sem saber, já sabia que a vida tem que ser mais que "enfrentar o touro pelos cornos"; tem que ser também agarrá-la a ela pelos túbaros.

Ana Amorim Dias

Das trevas para a luz

Das trevas para a luz

Liguei-lhe ainda antes das dez da manhã. Não sei há quantos meses não falávamos. Há muitos...
- Ana!! Passa-se alguma coisa? Eu vou já para baixo!!-
- Calma, querida! Não se passa nada. - ela quase não me deixava falar.
- Nem precisas de dizer o que é! Eu arranco já para o Algarve e vamos resolver o problema!
Por esta altura já eu estava engasgada em gargalhadas.
- Sim, Angela, eu sei: há as pessoas que criam os problemas e as que resolvem os problemas...
- ...e nós resolvemos problemas!- terminámos em coro.
A hora seguinte foi, como sempre, de uma cumplicidade, alegria e entendimento para lá do explicável e, no entanto, tão comuns como o são (felizmente que para isto ainda não criaram imposto) as grandes amizades.

Hoje acordei a pensar em ti. O cheiro extasiante da terra molhada e o encantador paradoxo do sol a desfazer o nevoeiro, trouxeram-me à memória muito do que vivemos juntas. Ao som das músicas que sempre me banham os dias, realizei um filme mental de uma beleza ímpar. E detive-me num momento, fraturado no tempo, há tantos anos atrás que parece ter sido numa outra vida qualquer...

Entraste no meu quarto, com o entusiasmo de sempre, a falar sem parar. E de repente gelaste: eu chorava copiosamente, já não me lembro porquê. A tua aflição por veres a "rocha de alegria e força" a chorar, foi tão grande e genuína que não pude impedir-me e comecei a rir por entre as lágrimas. lembras-te?

A amizade é isto! É ir ao cabo do mundo sem precisar de saber a razão. É uma amálgama de paradoxos incríveis que nos faz duvidar de toda a lógica. É a paixão incorpórea mais genuína e valiosa; aquela nos faz entender que existe quem nos consiga fazer voltar das trevas para a luz... com apenas um olhar.

E sabes que mais? Que se lixem os erróneos entendimentos! Eu amo-te!

Ana Amorim Dias

Fora do horário letivo

Fora do horário letivo

Com um filho de cada lado, consegui estender o braço até à mesinha se cabeceira. Peguei no comando para que a aparelhagem fizesse soar, aleatoriamente, uma música. E o Jorge Palma começou a narrar, com excelente melodia e ritmo, "Jeremias, o fora da lei".
- Mãe, põe outra vez!-
Não se nega boa música às criancinhas. Soou de novo e de novo e de novo até que, ao vestir-me, o espírito de fora da lei havia tomado conta de mim e as calças eleitas foram as mais rasgadas.

- Escolhe aí um CD, Tom.- pedi, quando entrámos para o carro.
Estendeu-me um dos DOORS e os meus olhos brilharam. "Ainda o dia mal começou e já conspiras a meu favor, Universo?"
- O quê, mãe?-
- Nada, nada...-
Fui todo o caminho para a escola a falar-lhes um pouco do Jim; inspirá-los com a genialidade que o som testemunhava e a tentar explicar-lhes porque é que há pessoas que não sabem lidar com a "atração do abismo". E agora, enquanto escrevo, percebo que da mesma maneira que nunca outras músicas foram tão capazes de fomentar a liberdade da alma... também nunca nada será tão poderoso, para a formação de uma criança, como as "aulas" que os pais lhes conseguem dar, fora do horário letivo.

Ana Amorim Dias

Esgrimir o tédio

- Bom dia, meninos!...Buon giorno... E dzień dobry!
Nesta altura começaram logo a bater palmas; ninguém estava à espera de um bom dia em polaco (desculpem mas sou incapaz se dizer "polonês")
Queria transmitir àqueles miúdos, nem que fosse só um bocadinho, a noção da importância da comunicação e o que ela pode fazer por nós.
Atirei-me de cabeça na conquista daquele difícil e mesclado público que me ouvia numa língua não materna.
- Vou-vos contar a história de como me transformei numa super-heroína...- comecei.
Agora que me lembro da cara de alguns, garanto-vos que me farto de rir. Ficaram tão embasbacados que tiveram de decidir depressa se estavam a entender mal ou se eu era apenas uma louca que ali entrara por engano. Mas prendi-lhes a atenção. ...Bem, pelo menos durante um bocado.

Estava no escritório, a imprimir uns documentos e, por obra do acaso, olhei para cima de um armário. E lá estava ele! O meu sabre desaparecido!
Levantei-me de rompante, saí para a rua e, mesmo ali no meio da quinta, perante o olhar estupefacto de algumas pessoas, comecei a esgrimir "em seco" contra inimigos imaginários.

Saí um pouco triste da palestra que, há dias, fui dar àqueles adolescentes: a falta de entusiasmo que lhes senti, por pouco não me contagiava. Como é que se pode ser tão jovem e inocente sem estar absolutamente entusiasmado pela vida? Serão a falta de empenho, energia e entusiasmo, algumas das maiores catástrofes do mundo atual? Fiquei triste, desiludida e preocupada. Estaremos a viver numa sociedade assim tão aborrecida que faz de todos meros recetores de produtos acabados que desconhecem o prazer dos processos criativos?

Passei largos momentos a matar saudades do sabre e a deixar sair, livre, o samurai que há em mi. Super-heroína ou não, sei que assumi o compromisso de esgrimir eternamente contra o invisível tédio... O meu e o alheio!

Ana Amorim Dias


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Em inglês

Em inglês

- E sabe falar inglês, não sabe? É que a língua oficial deste evento é o inglês.-
- Não se preocupe. Falarei em inglês.- tinha acabado de aceitar o convite para dar uma pequena palestra sobre o meu ofício a adolescentes de várias nacionalidades.
- Esteja cá na terça, por volta das dez e vinte.
- Combinado.

Daqui a pouco são dez e vinte e surgem-me duas questões.
Como é que miúdos polacos, italianos e portugueses me vão entender em inglês?
O que é que lhes vou dizer durante uma hora?
As duas questões fundem-se e são de muito simples resposta. Não posso perder de vista, nem por um segundo, a mais inflamada necessidade que me norteia sempre: inspirar os outros a viver uma vida mais emocionante e significativa. Quanto às barreiras linguísticas que o seu parco entendimento do inglês possa acarretar, isso só me vem ajudar; é que quando a comunicação por palavras se torna mais complicada, temos que acionar de verdade toda a energia interior para passar a nossa mensagem... e ela ainda se propaga melhor.
Jamais voltaria as costas à oportunidade de falar para um grupo de adolescentes. Quer me compreendam bem ou me tenha que "esfolar" por isso, vou fazê-los entender que, quando nos reinventamos como nossos supremos heróis, a vida se torna épica.

Ana Amorim Dias


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Mulheres da minha vida - A fábula -

Mulheres da minha vida - a fábula-

Ao contrário do que aconteceu no domingo anterior, ontem "vesti-me" de fada e, munida de música como varinha de condão, dei uma tal "reviravolta" à casa que ela ficou a parecer um palácio das mil e uma noites.
No fim da tarefa, enquanto esperava pelos meus três meninos para irmos almoçar, sentei-me na bancada da cozinha a degustar maçã com queijo e a ver velhos álbuns de fotografias. Até que me deparei com esta e pensei: "olha, as mulheres da minha vida..."

Continuo a ver a minha mãe com os meus olhos de criança maravilhada: como um Ser etéreo, demasiado magnífico para poder ser real; como a princesa mágica que deslizava pela casa com o seu robe de seda salmão, a parecer uma visão fantástica. E lembro-me de ficar a olhar para aquela mulher alta e lindíssima, fascinada pelo facto de a ter como mãe.

- Tu vais ser escritora!- disse-me a minha irmã, sentada no almofadão do quarto, debatendo-se com um livro de matemática e um pacote de batatas fritas, enquanto ouvíamos os "Police".
- Eu? - perguntei na incredulidade dos meus seis anos.
- Sim. Tenho a certeza! Além do mais, tu podes ser tudo aquilo que sonhares...

Os anos passam. A vida muda. A visão fica.
A colossal influência das mulheres da minha vida continua gravada em mim em forma de bênçãos. Incontáveis. Valiosas. Inexplicáveis. Talvez seja daí que me chega a certeza de que as verei para todo o sempre como dois Seres fantásticos que, embora reais, só podem ter vindo do mais encantador dos reinos da fantasia.

Ana Amorim Dias

A mensagem

A mensagem

Estávamos os dois na sala, espalhados pelos sofás, sem prestar muita atenção à televisão.
O telefone soou com convicção.
- Isto é o som do teu?-
- Não. E do teu também não...-
Olhei melhor. Estendi a mão, peguei no telefone do Tomás e li: tem 1 mensagem nova de "menina x" (a menina X tinha nome, mas prefiro manter-me em "segurança" e não o escrever aqui). Passei o telefone ao Ricardo que sorriu e o colocou de volta no sítio.
- Já começa...- foi tudo o que disse.

Quando entrou em casa, o Tomás agarrou no telefone e atirou-se para o sofá... e eu a observar a cena com olhos de predador. Olhou. Pousou. Inclinou a cabeça para trás e esboçou uma amostra de sorriso corado. Voltou a olhar mas sem abrir a mensagem.
- Tomás! Tomáhás! Quem é a "menina X"? - perguntei como se fosse sua irmã mais nova.
- OH MÃEE!!- e riu-se, feliz.

Curiosamente não me estou a lembrar de nenhuma analogia, alegoria ou metáfora na qual possa introduzir este episódio. Se calhar é mesmo assim; se calhar há situações e momentos em que nada mais há a dizer: basta ficar num silêncio feliz... a observá-los a crescer.

Ana Amorim Dias

Fora da caixa

Fora da caixa

"Pensa fora da caixa" está muito visto, banalizou-se. A expressão perde a sua coerência de grande sabedoria no simples facto de as pessoas, por regra, pensarem "fora da caixa". Pensar é fácil, quase tão fácil como sentarmo-nos a sonhar; o complicado mesmo é existir. EXISTIR FORA DA CAIXA. Como é que isso se faz, afinal? E, muito importante, o que é a caixa? É uma vida monótona e sem grande sentido? É o nosso corpo? São os grilhões que aceitamos que nos prendam?
Tentando colocar as coisas de uma maneira tão simples como sempre, vou partir do princípio que pensar fora da caixa é ver mais além, é sonhar e perceber que existe mais, muito mais, para lá daquilo que nos rodeia. E existir fora da caixa? A resposta parece-me óbvia e, embora possa parecer paradoxal, faz sentido. Existir fora da caixa é existir no plano da própria essência, do que há de mais intrínseco em nós. É existir para o encontro profundo connosco e com todo o "grande desconhecido" que em nós se encerra. Existir fora da caixa é seguir instintos e impulsos; é deitar a língua de fora aos medos e rir de quem goza com a nossa "inconsciência". Existir fora da caixa é conseguir encarar cada dia como uma aventura incrível; é deixar marcas nos outros de tanto deixar que eles nos toquem; é ver para lá do visível e dizer para além do dizível; é sentir o nosso divino interior numa sintonia universal.
Pensar fora da caixa, sim, mas saindo dela de facto...

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer