(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

28.7.13

O que andam por aqui a fazer?

O que andam por aqui a fazer?

Andava com o pensamento às voltas. O que iria hoje escrever?
Sobre o acompanhamento onde fui buscar os meus filhos e a paciência da avó? Sobre o gato que já só quer andar à solta? Sobre o silêncio que temporariamente voltou a pairar na quinta? Sobre chakras e kundalinis ou o que irei fazer para o almoço de amanhã? Sobre o documentário em que ando a trabalhar ou os prazos de entrega de artigos que estão quase a chegar ao fim? Sobre o fabuloso mojito de morango que ontem fiz ou os casamentos que tenho que organizar?
E então o pensamento parou e tudo voltou a ordenar-se num alinhamento perfeito com o ato de apenas ser.
Não preciso de escrever sobre nada de especial. Basta-me apenas deixar fluir os dedos no teclado ao sabor do mais puro sentir. É assim que todos os dias celebro algo que desejo a todos e tão bem sei atingir: o mais puro e reconfortante encontro comigo e com o que ando por aqui a fazer.
É por isso que hoje terão que me perdoar, mas vejo-me obrigada a deixar-vos a mais complexa questão: o que andam por aqui a fazer?

Ana Amorim Dias

Chegada da guerra

Chegada da guerra

O que faz uma pessoa quando chega da guerra?
Eu descarreguei as compras.
Depois tomei um longo banho, dei de comer ao gato e limei as unhas. Senti-me tentada a adormecer um pouco, mas as palavras escondidas em mim, falaram mais alto que o sono, exigindo vir à tona.
Estendida na cama, ouvindo o vento lá fora, atribuo-lhe agora uma grande parte da culpa. Pior que um dia frio de verão é um dia frio de verão no Algarve. O povo salta dos areais e invade as estradas, as terras, as ruas. Demorei quatro horas a tratar de coisitas que, na pior das hipóteses, me costumam tomar duas. Carrinhos de choque com os corpos, com os carros de supermercado e com os carros verdadeiros. Caras carrancudas, stressadas, aborrecidas. E as buzinadelas. Pergunto-me para quê. Quem está parado na estrada não o faz por gosto: é porque não pode avançar.
Cheguei da guerra, mas só cansada. Vim ilesa de corpo e alma. Estive lá mas com o escudo imunitário de quem é só observador. É muito melhor assim. Não fiz más caras, cedi várias vezes passagem com o corpo, com o carrinho de supermercado e com o carro, enquanto via a aborrecida multidão e ouvia os "buzinadores". Posso não ter descoberto a explicação para certos comportamentos, mas comprovei que quando se olha como se se estivesse de fora, a nossa atitude tende a ser diferente e melhor.
Agora vou fechar os olhos e talvez sonhar com as caipirinhas que vou fazer daqui a pouco...tranquilamente...e sem buzinas.

Ana Amorim Dias

Fico feliz por estares triste

Fico feliz por estares triste

Ela andava numa azáfama, a fazer as malas de toda a família para regressarem a casa. Depois de umas semanas passadas a oito numa desassossegada harmonia, as férias deles terminaram e chegou a hora do adeus à Quinta do Monte e a todos os seus habitantes.
- E então Mafalada? Estás triste?-
- ... Estou!- respondeu num meio falsete.
- Fico feliz por estares triste!- pus tanta emoção na frase que começamos as duas a rir.
É verdade que isto não é coisa que se diga a uma amiga, mas a Mafalda percebeu logo que eu apenas estava feliz com aquela melancolia por ela ser um reflexo de dias muito felizes.
E foi assim que comprovei hoje de novo que, no contexto certo, até as frases mais ofensivas podem conter muito amor.

Ana Amorim Dias

Benção

Benção

No dia do escritor percebo porque não sou outra coisa qualquer. Não poderia ser jornalista ou repórter. Demasiada emoção impede a imparcialidade. Vejo a jornalista da SIC a fazer o seu trabalho na Galiza, junto ao local onde o combóio ontem se acidentou, e pergunto-me como consegue ser tão profissional.
Sou escritora porque sinto. Sinto tudo. Sinto demais. O que já vivi e o que espero nunca vir a viver. Escrevo como quem faz algo que não se escolhe, que vem agarrado à alma, colado às células. Escrevo como quem explode por não saber manter lá dentro o que sente. Benção ou maldição? Benção! Mil vezes benção!

Ana Amorim Dias

Aquele som

O som

Quando ele começou a puxar, todos fizemos silêncio. As conversas pararam para reverenciar o som da rolha a saltar da garrafa daquele excelente vinho tinto.
E ele, de uma forma que me pareceu ligeiramente maquiavélica, fez a rolha deslizar com tal suavidade que o "ploc" que todos queríamos ouvir acabou por não soar.
- Que maldade, Ricardo! Queríamos ouvir o som!!- reclamei.
- Desculpa lá mas assim é que as garrafas se devem abrir. Assim é que é fino!-
Por momentos pensei que ele me estivesse a gozar mas, nos dias seguintes, comprovei a teoria com pessoas que considero idóneas. Não é no entanto por ser de bom tom abrir garrafas sem escândalo que a minha alegria se acomoda ao silêncio. Com o champanhe nem me importo muito, conformo-me com um "ploc" deslavado, causado quase numa envergonhada surdina. Mas o vinho tinto? O néctar dos néctares? Não celebrar uma das mais perfeitas formas de arte em que natureza e homem trabalham num esforço conjunto? Não me parece etiqueta, soa-me mais a crime!
Não sei se nos próximos dias abrirei alguma garrafa mas, da próxima vez que o fizer, colocarei no sonoro "ploc" toda a minha mal educada alegria. Porque a vida não é a soma das regras e da etiqueta, é (ou deve ser) uma constante celebração agradecida!

Ana Amorim Dias

Gosto

Gosto

As ondas pequeninas de uma beira mar muito morna, atingiam os nossos corpos com doçura.
- Amas-me?-
- claro!-
- Porquê?-
- Porque és minha mãe!-
- Só por isso?-
- Não! Amo-te porque és minha mãe e és muito fixe.-
Gosto da forma simples como o João vê a vida.

Algum tempo depois, deitada a poucos metros do mar que continuava a subir:
- Já viste Tomás?-
- O quê, mãe?-
- Os meus super poderes! Estou a atrair o mar para mim só com a força do pensamento!!-
- Fantástico mãe! E sabes? Daqui a um bocado também vais ter o poder de o fazer recuar outra vez!-
Gosto da forma diplomática como o Tomás entra no meu mundo de fantasia.

No regresso a casa o Ricardo saiu do carro para pôr gasóleo. Quando voltou a entrar eu tinha começado a fazer soar na aparelhagem o "let it snow, let it snow, let it snow" e, entre fortes gargalhadas, os miúdos já estavam a fazer coro comigo.
- Tu és mesmo muito doida!!- comentou embevecido.
Gosto da forma como o meu marido revela o bem que me conhece.

Ana Amorim Dias

Deusas

Deusas

Ouvido há três minutos, de novo na passadeira da praia:
- Acarinhada? Ela é mas é uma Deusa! Ele trata-a como uma Deusa!-
- Sim, e faz-lhe as vontades todas...-

Fiquei feliz por não conseguir encontrar qualquer ponta de inveja naquelas palavras. Mas também fiquei admirada. Ok: ele (não faço ideia quem) trata-a (também não sei a quem) como uma Deusa. E depois? Qual é o espanto? Não é exatamente assim que devemos ser tratadas? Será que não temos uma certa dose de culpa quando nos tratam sem a mesma adoração e admiração que uma divindade merece? Temos sempre a hipótese de excluir das nossas vidas quem não nos trate como Deusas. Da mesma forma que, creio, é a nossa atitude que faz o nosso homem adorar-nos e admirar-nos como se num altar merecêssemos estar. E o mais engraçado é que, numa relação de causa e efeito, homem que nos trate assim é igualmente feliz e afortunado pois as Deusas são infinitas fontes de dádiva, perdão, sabedoria e amor.

Ana Amorim Dias