(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

21.7.13

Regras

Regras

Ouvido na passadeira da praia:
- Oh mãe, mas porquê?-
- Porque não, são essas as regras!-

Isto é resposta que se dê a uma criança? Não faço a mínima ideia do que é que o puto estava a pedir. Seria uma bola de berlim? Caso fosse, a senhora devia ter respondido que iam almoçar e ele perderia a fome para comer o peixinho. Ou estaria ele a pedir que ela lhe comprasse os componentes para fazer uma bomba caseira? Nesse caso deveria ter explicado que ele colocaria a sua integridade física ( e alheias, certamente) em risco, o que não era de todo conveniente.
Fiquei com vontade de voltar para trás e segredar no ouvido do miúdo: "Põe em causa as regras que não te pareçam justas!". Se o tivesse feito teria aproveitado também para o instigar a colocar em causa a autoridade e sabedoria de quem faz as regras a que ele terá que se sujeitar pela vida fora. Seria uma irresponsabilidade da minha parte? Provavelmente. Talvez estivesse a despertar um monstro. Mas, por outro lado, também ninguém me garante que não estivesse a lançar as sementes para um futuro homem desperto.

Ana Amorim Dias

Berlindes

Berlindes

Que os filhos são a maior riqueza da vida duvido que alguém conteste. Mas descobri recentemente que são inúmeras as fórmulas que podem usar para nos fazer sentir verdadeiros magnatas.
Há uns tempos estivemos em Londres e, entre muitos outros pontos altos, o momento preferido do João foi a visita ao Hamleys, uma loja de brinquedos de vários andares. Até aqui nada de novo. Contudo, agora que anda louco com a coleção de berlindes, recordou a variedade que lá havia e decidiu avisar-me:
- Mãe! Temos que ir a Londres!-
- Desculpa?-
- Sim! Ao Hamleys, comprar berlindes!-
E pumba: ganhei um par de gargalhadas e a momentânea sensação de ter vários milhões no banco.

Ana Amorim Dias

Dúctil

Dúctil

- E vês? Há pedras muito duras e há outras mais dúcteis.-
- O que é dúctil, pai?

O meu pai era escultor. Foi da sua boca que ouvi pela primeira vez esta palavra. Explicou-me que trabalhar pedras dúcteis implica menos esforço pois são mais moldáveis e suportam mais pressões antes de quebrar do que as que são demasiado rígidas. Não sei se ele preferia extrair as suas obras de blocos de pedra dura ou dúctil. Nunca lhe perguntei. Mas aprendi que o seu jeito de ser rígido se tornava extraordinariamente dúctil perante o escopro dos meus carinhos.
Agora que penso nisso e analiso as pessoas à luz destas definições, concluo que mais vale ser-se dúctil que duro. Quando os factos da vida nos esculpem com intensidade, a dureza excessiva implica uma mais fácil quebra. Mas no fundo, se me perguntarem, direi que ambiciono ambas as propriedades: nas virtudes quero-me dura e imutável, mas em tudo o que posso mudar para melhor desejo-me moldável e dúctil.

Ana Amorim Dias

Atritos

Atritos

Depois de mais um almoço tardio fiquei sozinha com ela à mesa. O calor e a barriga cheia convidavam a uma preguiça assumida. Sem saber muito bem como, a conversa foi parar a casos, que ambas conhecemos, de pessoas que se dedicam de corpo e alma aos atritos. Mas fomos mais longe tentando perceber se o pessimismo, a mania da perseguição e a amargura são tendências genéticas ou simples opções de vida.
- Eu acho que quem é assim já tem um problema tão grande por ter que lidar consigo mesmo que nem precisa de mais nenhuns contratempos! - opinava ela.
Não chegámos a conclusão nenhuma quanto ao facto de se tratar de uma condição de essência ou de escolha pessoal. Mas ambas concordámos que ignorar provocações, não levar nada muito a peito e virar costas a quase todas as "guerras" é a melhor das atitudes. Só assim se desliza bem: sem atritos.

Ana Amorim Dias

Luso fusco

Lusco fusco

Eles vinham lá do fundo a falar ao mesmo tempo sem se ouvirem um ao outro.
- Oh Ricardo, não mistures o dia e a noite...- dizia o PP.
E eu, que juntamente com a Mafalda os olhava com ar condescendente, comentei: - Vês? O Ricardo está a fazer um lusco fusco!-

Hoje acordei, pela segunda vez, ao lusco fusco. Dormi mais horas nesta sesta do que durmo muitas noites. É que há dias que parecem noites, tal é a intensidade da "cowboiada". E enquanto conduzia em direção a uma nova noitada lembrei-me das palavras deles e percebi que misturei o dia com a noite, gerando um lusco fusco, esta hora mágica do ocaso tão encantadora de viver. Acho que enquanto me lembrar deste episódio vou continuar a ter consciência de que podemos realmente criar, a todo o momento, a nossa hora preferida.

Ana Amorim Dias

Anjos humanos

Anjos humanos

Diz que hoje é dia do homem. Pelo menos lá para os lados do Brasil. Parece-me bem. Sem ironias de qualquer espécie.
Não deve ser fácil ser homem. Nada fácil mesmo, especialmente agora que a mulher se afirmou com tal veemência que muitos valores se alteraram.
Como reagiria eu, perante as mulheres, se fosse homem? Insistiria em pagar sempre a conta do restaurante? Sairia do carro a correr para lhes abrir a porta? Seguiria todas as regras de etiqueta perante esses seres que de frágil apenas têm a fama? Se eu fosse homem será que as compreenderia, que não descriminaria nem julgaria por atos menos femininos? Será que desesperava quando ficasse à espera que se pintassem e escolhessem os sapatos que ligam bem com a roupa? Ou perderia a paciência com os gritos histéricos ao ver um bicho e com a incapacidade para abrir frascos?
Sei exatamente como seria se fosse homem. Talvez por isso compreenda tão bem os seus desesperos ao tentar lidar connosco. Ser homem implica um esforço constante, uma atenção que não tira férias nem dias de folga e acarreta o esforço eterno da paciência.
Não, decididamente ser homem não deve ser nada fácil. Ainda por cima por terem que, a todo momento, contrariar a natureza e os instintos para nos terem satisfeitas e tranquilas.
Ser homem deve ser de tal forma desgastante que não consigo compreender as mulheres-carrasco, que eternizam a guerra dos sexos e não os apoiam na complicada odisseia de coexistir connosco.
Já o disse uma vez e repito quantas sejam necessárias. Os homens precisam de mimo. Precisam de compreensão, espaço, atenção e aceitação. Não existem para serem mudados, moldados nem domesticados.
Homens são homens e sempre serão. É precisamente aí que lhes reside o encanto! Ou talvez apenas me seja fácil ver as coisas assim por todos os homens da minha vida serem anjos na terra. Eu pelo menos é assim que os vejo.

Ana Amorim Dias