(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

16.6.13

Perfeição

Perfeição

Entrei nele com calma. Tinha estado a correr na areia dura da maré baixa. As gotas de suor contra a frio acentuado da água. O ritmo cardíaco forte contra a paz que o tranquilo mar me traz.
Mergulhei. Uma e outra vez. Nadei um pouco. Voltei para águas pouco profundas e deitei-me, submersa, embalada pelas minúsculas ondas, pensando que para a perfeição só me faltava a música.
O minimalismo é um exercício cada vez mais difícil num mundo assolado por complexidades crescentes. E é nestes momentos perfeitos, de uma simplicidade absoluta, que me consciencializo novamente do óbvio: tudo o que possuímos mesmo são momentos. Momentos e a aprendizagem a que o cérebro e a alma se dedicam. Tudo o resto apenas podemos usufruir. Melhor ou pior. Com mais ou menos esforço. Durante mais ou menos tempo. Com maior ou menor sabedoria. Tudo o resto apenas vale pelos momentos que proporciona e pelo que contribui para a nossa construção interior.
Agora vou-me. De novo para a perfeita união do corpo com o mar. De novo para o baile da alma com a simplicidade.

Ana Amorim Dias

Azulejos na parede

Azulejos na parede

Cada vez que olho para casas cujas paredes exteriores são forradas a azulejos, sinto um forte arrepio de pavor a percorrer-me a coluna. É como se entrasse como figurante num filme de terror de há três décadas, em que zombies e vampiros mal caracterizados podem saltar de trás das moitas a qualquer momento, para me tentar transformar num deles.
Percebo que a colocação de azulejos serve para suprir a necessidade de se ter que pintar tudo de tempos a tempos. Mas nem esta compreensão aplaca a tristeza que tais visões me causam. Azulejos nas paredes exteriores das casas são como a teimosia nas paredes do caráter das pessoas. Aquela teimosia que insiste na imutabilidade que impede o crescimento. Há pessoas que se forram de azulejos intocáveis para não terem o trabalho de se voltar a pintar de cada vez que o mofo bolorento dos defeitos se instala. Por isso tento não ter azulejos medonhos a forrar a minha essência. Quero ser como a avó Rosa que, a cada nova primavera, caiava todas as paredes que via.

Ana Amorim Dias

Viagens no tempo

Viagens no tempo

Estava a ver fotografias na net e parei perante a silhueta do gigante. Era-me familiar.
Alguns segundos de atenção bastaram para perceber que estava a olhar para a "Piedra Peñol", um monólito de duzentos e vinte metros de altura, situado na província de Antioquia, na Colômbia.
Voltei lá nesse instante, dez anos depois de lá ter estado, com uma precisão incrível. Regressei ao momento em que a imponente rocha se elevou perante mim. Voltei a subir os setecentos e dois degraus e a perder-me no horizonte incrível que os olhos puderam alcançar.
Mais uns segundos e voltei a descer. Encontrei-me de novo no jeep branco do Luís e a escutar a música que ouvi pela primeira vez naquele instante, com a Pedra Peñol a ganhar distância: "Cualquier dia, cualquier hora, volveremos a vernos, en cualquier lugar, para hablar de amor..."
Regresso da viagem às minhas memórias. Faço soar a música no YouTube, ainda com o intenso sabor daqueles momentos a adoçarem-me a alma. "Ay amor, si yo pudiera abrazarte ahora, poder parar el tiempo y la demora, y nunca más dejarte ir de mi..." Há pessoas-rochedo na vida de cada um de nós. Pessoas que nos fazem sentir a vertigem da altura e a segurança da sua solidez. E depois há bênçãos. Bênçãos que nos chegam em pequenos nadas nos quais tropeçamos, simplesmente para cair desamparados nestas divinas viagens no tempo.

Ana Amorim Dias

Não sei falar essa língua

Não sei falar essa língua

Há alturas em que fazermo-nos de estúpidos é a atitude mais sábia a tomar.
Mesmo quem é pacífico e tolerante passa, num ou noutro momento da vida, por situações de algum atrito. Há pessoas que, sem sabermos bem porquê, nos enervam. E também há pessoas a quem, sem entendermos o motivo, despertamos as maiores raivas.
Perante quem nos irrita a solução é simples: ou afastamo-nos ou decidimos entender os porquês mais profundos e decidimos resolvê-los, passando a desvalorizar tal incómodo.
Quanto àquelas pessoas que não nos suportam, a solução ainda é mais fácil: basta simplesmente agir como se estivéssemos em morte cerebral ou como se quem nos provoca falasse uma linguagem desconhecida que não temos a mínima intenção de aprender.
Dizem que as incompatibilidades existem por vermos espelhado no outro as coisas de que não gostamos em nós. Deve ser por isso que não me lembro de quase ninguém que me irrite de verdade.

Ana Amorim Dias

O que te sobra em altura

O que te sobra em altura

A senhora que nos atendeu ontem no restaurante, ficou realmente impressionada quando te viu levantares-te.
- Por Diós! Que alto! Cuantos años tienes, niño?-
- Faço amanhã doze. - Respondeste tu com um sorriso confiante.
E quando a senhora te "raptou", para te mostrar às colegas, mantiveste essa postura meiga, satisfeita e humilde que te acompanha quase sempre. Ontem à noite ainda tinhas onze anos, mas já mais de um metro e oitenta...

Devo confessar-te que conheço bem a sensação, mas há algo que quero explicar-te: temos a obrigação redobrada, quando vemos tudo mais cá de cima, de abarcar a visão ampla da humanidade. Olhar para tudo do alto pode conferir a tendência de uma certa superioridade. Não somos maiores que ninguém, meu amor. Não se é mais que os outros por se ser mais alto, mais forte, mais inteligente. Não se é mais que os outros por se ter moto quatro e piscina, tenho a certeza que já o sabes muito bem. Nunca somos mais que os outros mas temos a obrigação de lutar por sermos melhores que nós mesmos; temos a obrigação de crescer em bondade, humildade, humanidade e sabedoria; temos a obrigação de sentir o que sentem os outros e de lhes estender a mão sempre que nos seja possível.
O que te sobra em altura ainda te falta em experiência e conhecimentos. O que te sobra em altura ainda te falta em desilusões e visões dos lados menos belos da vida. Mas fico feliz por saber que tens pais e avós e tios e amigos que não te deixarão esquecer que o que te sobra em altura também te sobra em bondade. Sobrará sempre.
Não posso terminar sem dizer-te que, mais que dares um novo sentido a estes últimos doze anos da minha vida, a transformaste numa nova fase de um crescimento e alegria absolutamente indizíveis. Cada dia me construo mais a teu lado e aprendo que as lições são quase tanto de pais para filhos, como de filhos para pais.
Obrigada por existires, seres como és e me fazeres tão profundamente feliz.
Da mãe que te adora,
Ana Amorim Dias

Vozes

Dois dias de silêncio forçado. Dois dias complicados, a ouvir sem poder responder. Dois dias muito longos, passados a pensar sem expressar; passados a quase nada dizer por ter que poupar a voz.
Mas estar afónico é uma benção. Todos devíamos ter afonias esporádicas para conseguir interiorizar certas coisas. Porque não deixar escapar na voz tudo aquilo que verbalizamos, pode trazer consequências soberbas.
Há quem fale demais. Há quem cale demais. Há quem faça valer tudo aquilo que diz. E nem acredito que haja falta de espontaneidade em quem doseia sabiamente a utilização das cordas vocais.
Há coisas que não precisam de ser ditas: explicam-se melhor no silêncio.
Há outras que mais vale calar: nada de bom originam.
Há frases óbvias, feitas, feias, que nem sequer correspondem ao que se está a pensar: a sua utilidade é nula.
Há tons de voz cortantes, despropositados e frios que nada resolvem e fazem quem os emite sentir-se ainda pior.

Há vozes firmes, delicadas mas ainda assim decididas, que se bastam com poucas palavras.
Há palavras doces mesmo para dizer coisas tristes.
Há frases que marcam positivamente e para sempre a vida das outras pessoas.
Há dizeres que causam gargalhas, alegria, paixão e compaixão.

Falar ou calar é mais que uma questão de espontaneidade ou calculismo. É uma questão de sabermos escolher bem o uso que damos à voz! Falar sim, sempre, mas de preferência para fazer coscuvilhice invertida (falar bem de uns aos outros), para inspirar, transmitir esperança, coragem, amor; falar para nos tornarmos melhores, para melhorar a vida dos outros e colar-lhes um sorriso à cara; falar para mudar o Mundo, ou pelo menos para tentar.

Por tudo isto não posso dizer que não aproveitei bem estes dias: treinei-me um pouco a usar a voz apenas quando daí venha algo de positivo. E de caminho percebi que muitas vezes quanto mais baixo falamos mais alto nos fazemos ouvir.

Ana Amorim Dias