(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

1.4.13

Evolução e esfregonas

Evolução e esfregonas

- Percebes mãe?-
Tenho a impressão que ela me respondeu com um olhar baralhado de incompreensão, mas não posso garantir porque ia com atenção à estrada.
- O que fazemos de mais banal pode ganhar dimensões super emocionantes se dermos o enquadramento certo. - continuei. - Por exemplo, andar de carro é algo a que já quase não se dá valor, mas se imaginarmos que estamos a guiar no velho Oeste, no tempo em só havia carroças e cavalos, a condução ganha outro sabor!-
A grande vantagem da minha mãe é que já me atura desde o dia em que eu nasci, por isso nada lhe faz confusão. O que me fez confusão a mim foi a reviravolta que a conversa deu. Evolução para cá, desenvolvimento para lá e eis que chega a sua bombástica revelação.
- As esfregonas só apareceram quando tu tinhas um ou dois anos... E tínhamos que ir a Espanha comprar. Foi uma maravilha!-
Continuo a tentar perceber como é que não bati no carro da frente. Então eu sou anterior às esfregonas???? Eu já existia quando as mulheres puderam passar à posição ereta para lavar o chão da casa?? Mas como? Eu ainda sou uma miúda!
De repente senti que pouco faltou para, durante a infância, ter tido por animal de estimação uma cria de dinossauro. Mas depois, num breve flash, recordei tudo o que existia e não existia nesses meus primeiros anos e compreendi que não sou eu que sou muito velha, é a evolução que é mais galopante que os tais cavalos do velho Oeste que às vezes me acompanham na estrada.
De qualquer das formas há uma coisa que é certa, vou levar o resto do dia para me conseguir ultrapassar o choque de ter descoberto que sou anterior à era da esfregona!

Ana Amorim Dias

Lembro-me

Escrever a vida

Lembro-me com precisão do que fiz há um ano. Lembro-me por onde andei, de como estava o tempo, do que pensei e do que senti. Não preciso de ir ler o que escrevi para me conseguir lembrar de tudo.
Lembro-me de muitos dias e momentos aparentemente normais, não por os catalisar em crónicas, mas por intensificar a vida ao escrevê-la. Assim de simples.
O que tem isto de bom? Uma coisa, acima de todas as outras: fazer com que todos os dias sejam dignos de ser vividos... e lembrados.

Ana Amorim Dias

Foco

Ganhar

Começo pelos matraquilhos. Um contra um. Ganho. O adversário, com o seu mau perder, desafia-me para um jogo de snooker.
- Quem ganhar este, ganha tudo.- explica, com vista a salvar a face.
Aceito. Sei que as minhas hipóteses são fracas porque, ao contrário dos matraquilhos, o snooker não é a minha especialidade. O meu oponente é bem mais forte que eu neste novo campo de batalha.
Dou a tacada da partida. Forte, firme, seca. As esferas ficam bem espalhadas e o adversário mete duas bolas e estrutura o seu jogo. Respiro fundo. Circulo à volta da mesa a planear a estratégia. Respiro com calma, centro o meu foco na direção e na força controlada que me deixa as bolas todas nas entradas dos buracos. O adversário ataca uma e outra vez até que por fim falha a preta. Tenho três bolas bem posicionadas. Tiro as medidas ao jogo. Deslizo como uma pantera pronta para chacinar a presa. Seguro no taco com a ferocidade e confiança de um daqueles bad boys que há nos antros de perdição. Só me faltam os olhos semicerrados pelo fumo da beata no canto da boca e duas armas nos bolsos.
"Foca-te, tu consegues." E meto uma. "Respira fundo, aproveita essa alegria confiante." Meto outra. Mantenho-me completamente neutra, sem manifestar qualquer reflexo do que estou a sentir. Meto a terceira bola e preparo-me para jogar à preta. "Yes!! Estás a jogar mesmo bem, nem importa que não ganhes!" digo a mim mesma. "Não ganhar?? Estar tão perto e não ganhar?? Maluca!", respondo-me.
Faço pontaria à preta. Doseio a força, esse meu ponto fraco quando é usado em excesso. Dou a tacada e fico a olhar para o lento rebolar da bola. Entra. Ganho o jogo outra vez. O adversário retira-se sem dizer palavra. Sabe tão bem ganhar. Tão bem, tão bem, tão bem!!
Tirando o condimento da sorte, todos os ingredientes necessários para ganhar dependem apenas de nós: o foco, a aptidão, a motivação, o esforço e, claro, a alegria de estar no desafio. E não me venham cá com histórias porque só jogar bem não é tudo. É que não é mesmo!

Ana Amorim Dias

O melhor banho

O melhor banho

Era Agosto. Agosto de 1989. O pó avermelhado e fino que os helicópteros elevavam pelo ar cobria cada milímetro do meu corpo. No Monte do Gozo, perto de Santiago, éramos 400.000 jovens por aqueles dias, naquela que foi a IV jornada mundial da juventude.
Vi o Papa João Paulo II, sim senhor: passou mesmo à minha frente. Mas a sensação de sujidade estava a perturbar-me com uma tal intensidade que creio ter rezado pelo milagre de um banho.
- Ana!-
Abri lentamente os olhos e vi-o, completamente desperto, a acenar para que o seguisse.
- Shhhh, não faças barulho para não acordares mais ninguém!-
Caminhei alguns minutos, no meio dos milhares de tendas e de pessoas que iam despertando para o dia, sem fazer ideia do que me esperava.
- Para onde me levas?-
- Já vês. Vais gostar! - e deu-me a mão para que eu não duvidasse.
Ao fim de uma curta caminhada, para lá da multidão, no sopé da colina, apresentou-me finalmente a sua oferenda: um riacho abundante e cristalino, sem uma única presença humana!
Creio que o meu agradecimento foi tão grandioso como a sua amorosa oferta: um banho de felicidade pura que me arrancou cada grama daquele pó infernal.
Tenho quase a certeza que foi naquele momento que me apaixonei por ele. Na parca sabedoria dos meus quinze anos lembro-me de ter pensado: "Uau! Se ficasse encalhada numa ilha deserta, que fosse com ele!"
Sei que lhe perguntei como tinha descoberto o fantástico manancial e que ele me explicou o raciocínio lógico que o levara ali. O que não lhe perguntei foi o porquê de me ter escolhido a mim para entregar o prazer daquele banho perfeito. Não foi preciso. Percebi bem depressa que ambos tínhamos escolhido a companhia um do outro para a aventura da ilha deserta do resto da vida.
O problema é que a ilha deserta do resto da vida pode ser tão incrivelmente hostil que poucos lhe resistem. É por isso que me alegro por lhe ter captado as grandes capacidades de sobrevivência; por o ter eleito. E é por isso também que quando as tempestades chegam à paradisíaca ilha, escolho nunca me esquecer...do meu melhor banho.

Ana Amorim Dias