(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.3.13

Em erupção

Para não morrer de tédio

Cada vez me convenço mais que os meus maiores inimigos se chamam "tédio" e "inércia". São como um daqueles casais de primos muitos afastados que às vezes se plantam na nossa sala à espera que lhes sirvamos um cházinho.
Ainda por cima, o senhor Tédio e a dona Inércia costumam trazer de lembrança um cestinho cheio de "nada" como se o vazio que os acompanha não fosse já suficiente.
Detesto este casalinho asqueroso mais do que consigo explicar, mas pergunto-me se não serei eu quem lhes potencia as visitas. Sempre que o meu vulcão diminui a intensidade das erupções, estou a convidá-los a entrar. Sempre que o meu agitado mar se espelha, abro-lhes de par em par as portas. Sempre que a emoção e a criatividade esmorecem, nem que seja por momentos, lá chega o senhor Tédio com a sua esposa atrás.
Pode ser que algum dia o calar do vulcão não traga consigo o vazio. Mas por agora só me resta prosseguir em erupção... para não morrer de tédio.

Ana Amorim Dias

Barafunda

Línguas

Chamo os miúdos para a mesa. Instalo um em cada ponta. Ou estudam a bem ou estudam a mal. O pequenino, à minha esquerda, lê baixinho em português. O grande, à minha direita, vai tirando dúvidas de inglês.
Continuo a repetir baixinho as frases em russo que a Sveta hoje me ensinou. O russo soa bem aos miúdos porque era nessa língua que ela lhes falava quando eram pequeninos. Riem-se todos de mim. Calo-me. Mas se quiser mesmo hei-de aprender. Mergulho de novo no livro que tenho que ler, em francês, para o meu próximo projeto que vai ganhando forma no ecrã do iPad. Interrompo para ler um texto em inglês e traduzi-lo ao Tomás. A Sveta aproxima-se e presta toda a atenção porque anda a aprender essa língua.
Passado pouco tempo as crianças escapam-se para a liberdade da vida fora de portas. A Sveta regressa à sua casa e eu fico sozinha à mesa, a tentar pronunciar as frases em russo; a tentar que as páginas que leio em francês façam sentido; a tentar não me entusiasmar demasiado com o livro que estou a escrever que, suspeito, será traduzido em tantas línguas quantas as que esta tarde foram à mesa servidas.

Ana Amorim Dias

On the road again

No final de cada curva

- Gostava de ter sido camionista. - Sempre que o digo ficam a olhar para mim embasbacados, a tentar perceber se falo seriamente ou estou a ironizar.
Há algo nas estradas que me prende, fascina, enfeitiça. Sobretudo nas viagens feitas a sós com a minha música e os meus pensamentos. Vejo-me imensas vezes a desejar que a estrada não se acabe no destino; a imaginar até onde chegaria antes que o cansaço me vencesse.
Não ligo muito à viatura, apesar de, confesso, algumas me darem mais prazer que outras. Não me importa se a estrada é constantemente por mim usada ou uma via desconhecida; não penso no ponto de partida nem na hora da chegada. O que me importa é o caminho e a sensação de movimento que esbate o horror da estagnação. O que importa é o encanto hipnótico do asfalto à minha frente e a maneira segura, prazerosa e consciente com que entro em cada curva. Creio que as curvas da estrada são para mim tão atrativas quanto as do meu interior porque quando entro nelas a paisagem muda para cenários tão fantásticos, incríveis e encantadores que tudo o que sei desejar é a eternização da viagem.

Ana Amorim Dias

Sombras

Sombras

Entendemos as nossas sombras como algo de mau. Mas as sombras dependem da luz. Só não enfrentamos as nossas sombras quando nos escondemos na penumbra, quando nos escondemos da vida. Prefiro mil vezes expor-me às luzes que me acendem as sombras do que fingir que as sombras não são uma parte integrante de mim.

Ana Amorim Dias