(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

3.3.13

Pão para a alma

Pão para a alma

Começaram mansos, de fininho, quase com timidez. Foram crescendo na reconquista a todos os que já conhecem as deliciosas criações do Rodrigo.
A cada novo tema, magistralmente executado, fui deixando os arrepios assolarem-me, enquanto sentia a regeneração de todas as células do meu corpo, curando-se ao ritmo das soberbas melodias. E ao mesmo tempo que este milagre me acontecia, pude perceber que os músicos se estavam a entregar. Numa cumplicidade perfeita entre si. Com uma alegria extasiada por estarem a fazer o amam, aquilo para que nasceram.
No fim, depois de três encores prodigamente aplaudidos, vim-me embora de alma cheia. Banqueteada na verdade. É que a música que nos tocam, quando a deixamos tocar-nos, é mesmo o pão que nos alimenta a alma.

Ana Amorim Dias

Por quem vives?

Por quem vives tu?

E então, na apoteótica escuridão, ele disse que morreria por ela. E ela acreditou. Porque era verdade. Ali e então, ele teria mesmo morrido por ela.

Assim de repente lembro-me de algumas pessoas por quem morreria. Mas se morrer por quem se ama, por quem se ama mesmo, nos é uma premissa inata, por que raios viver por quem se ama é tão mais complicado? A morte é curta. Sofrida ou não, é um simples parar tudo, que nos devolve ao etéreo. Viver é mais lixado. Viver é todos os dias, cada momento, cada segundo. E isso é impossível fazer por quem quer que seja, por mais se ame para lá do que as palavras possam explicar.
Por quem morreria? Por dois tenho a certeza, o resto não sei, teria que viver uma daquelas cenas de filme para perceber à frente de que corpos usaria o meu como escudo. Por quem vivo? Por tantos, tantos seres. E por mim. Vivo para dar e receber. Um pouco de tudo. Um pouco de todos.

Ana Amorim Dias

Entendimentos felizes

Entendimentos felizes

Uma rumba magnífica soa alto no rádio do carro. Ele sai e diz "até logo" com um sorriso bem doce. Deixo-o atravessar a passadeira, mesmo à minha frente, e uma vontade irreprimível apodera-se do momento.
Uma leve buzinadela, um adeus convicto e um sorriso rasgado. Qualquer outro adolescente teria virado a cara para o lado e fingido que aquela mãe não era sua. Mas o Tomás, com a sua infinita paciência e doçura, só não me retribui a leve buzinadela.
O êxtase é tão grande que me torno irrefletida e não só repito o chamamento com a buzina, o sorriso e o adeus, como os acentuo intensamente. E o pobre miúdo mesmo à porta da escola, com muitos amigos por perto.
- Pronto Ana, já fizeste merda!- penso, assim que termino a compulsiva excentricidade.
Mas aquela criatura deliciosa vira-se para trás, em câmara lenta como nos filmes, e dá-me o sorriso mais orgulhoso e belo que jamais vi em alguém. Arranco devagar com o carro a fazer-me deslizar numa paradisíaca nuvem de prazer, quando reparo que os amiguinhos dele também estão a sorrir...e a fazer-me adeus!
Moral da história? Há tantas. Mas creio que a mais importante é ter comprovado que quando as compulsivas excentricidades nos nascem de um amor feliz, serão sempre bem entendidas!

Ana Amorim Dias

No cume da montanha

No cume da montanha

- O que tens?-
- Nada.-
- Vá, diz lá. Não gosto de te ver assim.-
Continuei a bater na tecla do "nada" e ele a insistir na identificação das causas do meu acinzentado humor.
- Não estás alegre nem fazer disparates porquê?-
- Mas que raio! Uma pessoa não pode estar sempre nos picos da vida!-
O seu ar confuso convenceu-me e acabei por ir mais fundo, porque não?
- A minha vida é pouco emocionante, sempre igual! Estou aborrecida. A morrer de tédio!-
Abraçou-me, a rir às gargalhadas.
- Parva, queixas-te de barriga cheia!- e foi-se embora, tranquilo por já saber a resposta, deixando-me com um humor ainda um pouco mais escuro.
Não faço a mínima ideia se todas as pessoas sentem isto de tempos a tempos, mas há alturas em que a necessidade de estar no cume da montanha se apodera de mim e me esmaga numa falta de oxigénio interior que a alma quase asfixia.
Quando se escalam demasiadas montanhas pessoais e se passa muito tempo nos emocionantes cumes da vida, creio que se fica com um certo vício nas sensações de estar no topo do Mundo e viver sempre nos picos torna-se uma necessidade.
Analiso a conjuntura o melhor que posso e percebo três coisas:
- Subir até ao topo das emoções é fácil.
- Permanecer sempre lá é provavelmente impossível.
- Entender que não se pode viver constantemente em picos é fundamental para o equilíbrio emocional.
Mas a cereja no topo deste bolo meditativo apenas se materializa quando concluo que saber viver nos píncaros da emoção mesmo na vida normal é, nada mais nada menos, que o exercício prático da mais elevada sabedoria.

Ana Amorim Dias

Manter o foco

Manter o foco

Uma autoridade na matéria dizia ontem, no noticiário da uma, que devemos vestir várias camadas de roupa para melhor enfrentar a vaga de frio que se faz sentir. Eu e o meu irmão armamos logo um pagode, sob o ar embasbacado do meu sobrinho e a atitude de habituação conformada da minha mãe.
- E quando tiverem calor, tratem de despir a roupa, camada por camada! - continuou o meu mano com o mesmo ar de quem estava a fazer a mais incrível revelação.
- Ainda bem que fazem estes importante apelos, Miguel, caso contrário as pessoas ainda saem de casa com roupa de praia!- ironizo.
- Com este frio? Nem tu!- alvitrou a nossa mãe.
Depois de uma fraternal desgarrada de apelos óbvios que nos temperam o almoço com abertas gargalhadas, recolho às minhas visões do Mundo.
"Porque insistem as pessoas em ensinar aos outros o óbvio? Mas, óh Ana, não é o que tu estás constantemente a fazer? Bolas! Será? Não, não me parece! Pelo menos não o faço de forma óbvia e sim com as mais estapafúrdias alegorias! E creio que nunca me saí com algo tão mau como: está frio, por isso vistam várias camadas de roupa..."
A questão é muito simples, na verdade. Todos sabemos o que fazer quando temos frio ou calor. Todos sabemos o que fazer quando temos sono, sede ou fome. E sim, sem dúvida que todos sabemos o que fazer quando nos sentimos vazios, tristes ou sós, sem que seja preciso aparecer uma sumidade no noticiário da uma a dar-nos instruções sobre como voltar a encontrar o nosso centro, foco e felicidade.
Mas se nunca nos esquecemos que com muito frio devemos usar várias camadas de roupa, porque nos estamos sempre a esquecer como se sorri desde as entranhas, como se lança magia aos outros e como transformamos a nossa realidade vibrando na frequência certa?
Porquê? Porquê? Porquê?
Hum??
Só me ocorre uma resposta: falta de foco! Estamos tão concentrados em coisas que não valem porra nenhuma que deixamos de conseguir sentir o frio que às vezes se instala dentro de nós. E se não estamos atentos ao frio que se nos instala na alma, como poderemos saber que está na hora de nos vestirmos de amor-próprio, entusiasmo e boas emoções? Temos que nos consciencializar desses intensos frios para tratarmos de nos aquecer com música, dança, sorrisos, abraços, amor...
Temos que saber sentir que estamos frios para nos lembrarmos dos incontáveis agasalhos do nosso roupeiro interior, que nos podem sair por todos os poros, como partículas mágicas que nos aquecem a nós e a todos à nossa volta.

Ana Amorim Dias