(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.11.12

Oração




    Qualquer dia levam-me presa!   Ninguém me tira isto da ideia.  Mas vou arriscando mesmo assim.  Se chegar a acontecer logo se vê como me defendo,  porque dos olhares  indignados estou bem habituada a defender-me… com uma dose imensa de alegria.
    Aconteceu ontem de novo:  cometi um dos vários  “delitos”  a que não sei eferecer resistência.  Vagueando serena pela imensa mesquita de Córdoba,  a rir dos enxertos católicos àquele fantástico espaço de devoção islâmica, apoderou-se de mim uma incontrolável vontade de dançar. Já estava na vertigem de um momento  divino, tanto devido à enorme carga religiosa do espaço como à beleza que lhe acrestavam as músicas que ouvia no iphone.  E então  dancei e deixei o milagre acontecer.   E dancei, dancei, dancei…  Embalei o corpo à melodia no mais belo salão de bailes onde até hoje dancei.  Rodopiei com  os sultões e as suas virgens; com bispos e papas, com Deus e Alá.  Dancei até me fundir com a felicidade mais despropositada e absoluta. E foi só quando “voltei” do embalo desta oração tão sentida, que reparei nos olhares indignados.
Ri-me para quem me olhava: ao contrário da mesquita de Córdoba, não tenciono aceitar que me venham tentar “enxertar” comportamentos aceitáveis.
Ana Amorim Dias
  

29.11.12

Ao mesmo ritmo




   Olha pá, hoje quero que te lixes!
 Roubei-te o pescoço e colei-o aqui, nesta montra virtual  a que nem por nada te rendes!
  E não penses que  me vou desculpar pelo uso da imagem desse perfil que te ficou cristalizado num beijo.     Tenho uma carta na manga, sabes?  Tenho Ás de Trunfo que me entregaste há  quinze anos precisos, enquanto dançávamos ao som de um quinteto que me fazia todas as vontades.   A festa estava no fim, a  pista  era de novo só nossa e do Frank, e foi então que me sopraste ao ouvido o mais absoluto poder. Ainda o mantenho.  Mantive-o sempre, mesmo quando o julguei perdido.   E é em nome desse poder que te digo que sim; que posso usar a tua imagem e as tuas e nossas histórias mesmo sem que isso te agrade.     
  Calculo que não seja fácil amar-me. Calculo que a infâmia das marés eternamente mutáveis de mim  pudessem desesperar o mais robusto dos seres mas,  por algum motivo,  ainda aqui estás depois de quinze anos imperfeitamente perfeitos. Calculo já te ter levado ao mais fundo dos  infernos  muitas centenas de vezes, mas renasces sempre a teimar  em mim. Calculo que sejamos dois gigantes que se reconhecem quase tanto na força destrutiva da guerra  como no poder  titânico da criação.  Calculo que não te arrependas das tuas escolhas, como eu não me arrependo das minhas, porque  os gigantes não se arrependem,  prosseguem. Calculo que talvez sim, talvez me consigas mesmo amar para sempre.
   Tudo isto é o que calculo, mas de algo tenho a certeza: o  truque de dois seres lado a lado na vida apenas depende do ritmo…  e esse entre nós é perfeito. Tão perfeito como foi naquela noite, há quinze anos precisos,  em que me sopraste ao ouvido  tão corajosa promessa.

Ana Amorim Dias

28.11.12

O manga curta




    Tinha que ser!  Ontem chegou a casa com um andar abatido. Doía-lhe a garganta e a tosse pertubou-lhe o parco estudo.  Tive que alternar os mimos ao doentinho com umas raspas de raspanetes pois a culpa deste resfriado foi unicamente dele.  Parece-me que o Tomás anda com problemas em aceitar que o inverno chegou e isso talvez se deva à sua firme convicção de que só fica giro de Tshirt.   Não tem ligado nenhuma aos meus constantes apelos matinais de pôr um pouco mais de roupa e deu nisto!
 - Ai mãe… Dói-me a garganta… -
- Tosse mas é para o outro lado que não quero apanhar os teus micróbios! – respondi-lhe com secura enquanto recordei uma fase vivida no fim da minha própria infância.

    Ele era assim a dar para o loirinho.Um loirinho bonitinho. Um pouco mais velho que eu, acabadinha de chegar ao 5º ano. E o rapaz andava só de manga curta, fosse Setembro ou Janeiro. Creio que foi a minha primeira paixão e agora que penso melhor o assunto  sei  que tal atração se deveu à constante manga curta. Será que  o sexo feminino tem sempre esta tendência maternal de se prender sentimentalmente aos bad boys na esperança vã de os corrigir e proteger dos próprios erros? Será que a minha paixoneta infantil se teria esvaído no momento em que o tivesse convencido  a usar roupa mais quente? Não faço a mínima ideia. Tudo o que sei é que talvez já não esteja sozinha nesta minha odisseia de obrigar o Tom a proteger-se do frio… talvez já haja uma ou duas meninas com pretensões semelhantes.

Ana Amorim Dias

27.11.12

Vou ali, já volto



     Esta frase esteve desaparecida do meu imaginário ainda infantil durante bom tempo.  Voltou  de  repente.  Como um conjunto de iluminações natalícias que subitamente se ligam e trazem muito mais que luz.
   “Vou ali, já volto”  era a frase do meu pai sempre que queria mostrar  incredulidade ou indignação.  Quando optava por se fazer de tolo perante alguma situação em que a atitude mais digna era desvalorizá-la e voltar-lhe as costas, saía-lhe o “vou ali,  já volto”.   E eu achava piada à subtileza que envolvia tais palavras, por virem daquele homem tão grande que de subtil pouco tinha.
  O “vou ali, já volto” é muito maior que uma frase. É um ramo importante da árvore da sabedoria pois representa  a capacidade de lidar bem com o que não importa, deixando cair por terra vindouras irritações.  Não foi, contudo, assim que a frase ganhou de novo vida em mim. Isto aconteceu  com contornos ainda mais valiosos:  é que o “vou ali, já volto” também pode muito bem ser a atitude que temos perante os outros e que nos faz estar sempre presentes … mesmo quando vamos ali e já não voltamos.
Ana Amorim Dias

26.11.12

Agente tripla




    Viver no campo faz-nos ampliar a família. Não é que os ares extremamente puros nos façam ter ainda mais filhos, mas  o modo de vida bucólico  presenteia-nos, de uma forma única, com relacionamentos  incríveis. Há duas senhoras de idade, a “Comadre” Maria de Fátima e a “Prima” Maria Irene, que são uma espécie de avózinhas para mim e para os meus filhos.  Ora à luz desta explicação  já podem imaginar as gargalhadas dos miúdos quando começo, na brincadeira, a dizer-lhes que uma é agente secreta da CIA e a outra é agente dupla do KGB…  E ainda há umas semanas, perante a louca encenação que lhes estava a fazer, perguntaram-me os meus filhos:
- E tu, mãe? Também és agente dupla? –
- Claro que não! Eu sou agente tripla, mas não posso dizer mais nada, para vossa própria segurança! –
“ Agente tripla?? ” -  pensei, - “ Que raio é isso? ”.   Reservei a crónica para quando entendesse…

   Passamos a vida no difícil  equilíbrio de tentar agradar aos outros e a nós mesmos. E, no meio desta complicada e incessante “guerra fria”,  acabamos muitas vezes por perder o fio de prumo da nossa verdade mais cristalina. Assinamos constantemente protocolos surdos, acordos de paz insuspeitos e tratados vitalícios que nos baralham o derradeiro sentido dos anos que por aqui passamos. E foi ao pensar um pouco sobre isto que percebi a veracidade da afirmação. Sim, sou Agente Tripla! Trabalho para a minha vida exterior e para a sua compatibilização com as vidas alheias que fazem parte da minha… mas, em última análise, sei  que  nunca perco a noção de que só entrego   lealdade absoluta à evolução da minha essência.  

Ana Amorim Dias
  

   



23.11.12

Super



Vi uma imagem deste Rolls Royce e pensei logo: “ se fosse uma super heroína andaria num destes…”  e depois voltei à realidade.
   E a realidade é que  ando com uma sensação que não consigo descrever numa palavra só. Poderia falar em “ânsia”, mas não é bem. Talvez “desassossego”, mas também não alcança nem cobre na totalidade esta coisa que se começa a apoderar do meu interior.  Sei bem o que me falta: não escrevo há muito tempo …  Quem amiúde “me” lê poderá dizer que é falso, que quase todos os dias produzo algo escrito, mas a verdade é que se começa a abater sobre mim a pesada ausência de um envolvente romance. 
   Há já cinco meses que não me levanto para  o enredo nem me deito embalada pelas vozes das personagens que vão ganhando vida e alma em  páginas numeradas.  Há cinco meses que não “converso” com elas no carro, na fila do supermercado e no banho; que não lhes tento impôr a minha vontade, sorrindo perante a sua rebeldia de fazerem o que bem entendem.
     No fundo tenho sorte. Tenho sorte por conseguir pôr por palavras o que me atormenta; por conseguir  listar os erros para depois os tentar transmutar em acertos.   É  para isto que vos quero hoje alertar: todos temos más sensações; todos nos sentimos, por vezes, incapazes, impotentes  e pouco valiosos ;  todos experimentamos o pessimismo, a dor emocional,  o medo,a sensibilidade extrema e a falta de confiança em nós mesmos. Até aqui nada de novo, certo? Pois.   Mas o que não podemos deixar de lembrar é que é de todas estas coisas que nascem os super poderes que TODOS temos. É do medo que a coragem nasce. É pela  falta de confiança que procuramos fazer sempre melhor. É a sensibilidade que nos permite a emoção. É a dor que nos consegue mostrar os caminhos do prazer. É o pessimismo que nos torna lutadores e a impotência que  faz de nós aguerridos rebeldes.
  Pensem nisto da próxima vez que más sensações vos invadirem: é delas que vem a força sobre humana que todos temos para libertar. Quanto a mim, mesmo sem o Rolls Royce, acredito nos meus super poderes… e até já sei  que o próximo romance começará em breve pois já lhe vislumbro o enredo.
Ana Amorim Dias

22.11.12

Let it snow !




    No dia seguinte a ter começado a dar vida à sua mais recente paixão, esculpir esferovite, o João chegou da escola e perguntou-me:
- Então? O meu navio já é famoso? Já lhe  escreveste a crónica? –
Ia começar a rir, mas o Tomás interrompeu-me: - Óh mãe, não é justo! Tu escreves muito mais crónicas sobre o João do que sobre mim! –
“ Pensa depressa, Ana, pensa depressa! “ 
- Meu amor, eu não tenho culpa que o teu irmão ande sempre a “inventar” e, além disso, enquanto tu vês televisão e jogas computador ele está a dar largas às suas artes…não vês? –
   E então o Tom pegou num tule branco que estava por perto, colocou-o na cabeça e começou a imitar uma noiva.  – Mas eu faço-te sempre rir! –
  É verdade. Rio-me. Com um e com outro. E só não coloco aqui a fotografia do meu filho mais velho com um tule branco na cabeça porque os amigos dele também estão no meu facebook e seria mau para a sua imagem teenager.
   No entanto,  agora que escrevo sobre as preciosas gargalhadas que os meus filhos me causam, recordo que também sou uma mãe algo prepotente, gritona e ameaçadora. A sorte é que a magia da infância me regressa com frequência, como nos últimos dias em que, perante a profusão de esferovite que invadiu a casa toda, decidi parar de gritar e render-me à cantoria:   - let it snow, let it snow, let it snow -    Afinal, que mais são os filhos senão os potenciadores de algumas das mais preciosas lições?
Ana Amorim Dias

21.11.12

Escrever a dor



- Quando finalmente a desgraça te bate à porta é que não tens nada para dizer? -  Perguntava-lhe o pai após a morte do irmão.
   Não comecei a ver o filme do início e percebi que conheço mal a vida e obra de Florbela Espanca, mas aquela frase mexeu  comigo.
   Quem escreve sabe. Sabe que quando mergulhamos no dimensão paralela das palavras que, ordeiras,  se amontoam  criando uma nova realidade, já não se está no café, no escritório nem na mesa da sala. Quem escreve sem espartilhos nem grilhões, deixando a essência bailar numa oralidade plasmada, já não está no corpo que segura a caneta ou toca melodias divinas nas teclas do computador, porque entra inevitavelmente nesse mundo mágico, criado e criador; passa a existir nas  e pelas palavras apenas. Quem escreve sabe que, estando em si já não está,   e passa a existir apenas, durante esses momentos que se tornam eternos, num universo só seu que é, no fundo, de todos.
   Mas voltemos às palavras de João Espanca que,  perante a dor da filha,  a questionou sobre a sua incapacidade momentânea para a escrita. É ou não a dor que move o artista? É ou não a dor que torna imortal e sobre-humano o ser que a ela se entrega da forma mais criadora?  Deixem que vos responda: também mas não só!   A arte nasce da emoção. É algo que brota em convulsivas golfadas; algo que não se pode mais reter cá dentro; que é maior que nós e, por isso mesmo,  impossível de conter.  A arte, seja qual for a sua expressão, salta pelos poros de quem se emociona com a alma toda. Seja pelo amor, paixão, raiva, descrença, indignação ou dor. Seja por medo, coragem, exultação ou desespero, a arte nasce porque a emoção já não cabe em quem habita.
Ana Amorim Dias

20.11.12

Reprogramar




   É impossível que alguém fique indiferente ao que se está a passar de novo entre Israelitas e Palestinianos.  Tanto a proximidade geográfica ( hoje em dia tudo é ao nosso lado) como a proximidade humana (chama-se amor ao próximo, mesmo que desconhecido)  nos levam a lamentar que, em pleno  pináculo do desenvolvimento do Homem ( que é sempre hoje),   se continue a viver o pavor horripilante da guerra.
   Não sei quais são as questões que os outros colocam, mas a pergunta que me faço é:  como se muda o interior odiante de cada uma daquelas pessoas? Como se reprograma cada indivíduo de forma a não sobrar mais ódio nem quem o instigue?    Com uma leitura superficial destas palavras  até podem  ponderar:  “ coitadinha… não está a ver bem as coisas…”,  por isso deixem-me avançar um pouco mais. 
    Em todos os conflitos há duas partes culpadas. Em todas as desavenças, individuais ou coletivas, há acertos e disparates de parte a parte. Ambos os lados  são sempre mártires e ambos detêm também boas doses de razão.  Este caso não é exceção  e sei do que falo pois muitos dos telejornais da minha vida, quase desde que me lembro, me trouxeram imagens e relatos dos resultados deste ódio visceral que há tempo vive nas gerações daqueles dois povos.  Como pode deixar de haver ódio depois de tudo o que já fizeram uns aos outros? Não sei. Só sei que se o ódio não morrer,  morrem eles de ódio. Literalmente.
   A minha abordagem é simplesmente diferente. Improdutiva talvez,  mas exposta com a autoridade de quem sabe o que diz. É quando abrimos a mão e entregamos,  de coração limpo, aquilo que nos é mais querido, que a vida se encarrega de nos trazer tudo de volta.  E mesmo que não traga, mantemo-nos ricos, porque o ódio não habita em nós. 
  E, só para terminar, mais uma opinião:  não há nada que justifique que tanta gente viva naquele pavor; fomentar o ódio só dá merda e dar largas à violência apenas serve para tornar o fenómeno mais global.  Não sei como se reprograma  o interior dos outros seres humanos para a tolerância e perdão,  apenas sei que é possível! Tem que ser!

Ana Amorim Dias

19.11.12

Pessoas da Nossa Vida



   Quando conhecemos alguém há décadas, é normal  conhecermos também  todas as suas estórias memoráveis  e  episódios releventes, sabendo de cada  pormenor   e detalhe.  Quando as amizades, laços familiares   e  relacionamentos são duradores e presentes, não só conhecemos quase todos os pedacinhos da vida do outro,  como somos protagonistas constantes das histórias  que têm para contar.
   Mas mais:  quando conhecemos alguém há tempo suficiente, há muitas coisas que não precisam ser ditas; há olhares cúmplices; entendimentos imediatos; humores inatingíveis pelos demais.    Desenvolve-se um tipo de comunicação subliminar e extra-sensorial que só se atinge com um conhecimento profundo ,  alimentado pela energia eternamente renovável da ligação que têm certas almas.
   Há as pessoas que “nada nos dizem” e passam sem marca; há as pessoas que nos tocam muito mas que, por alguma razão, não temos capacidade para manter sempre perto; e depois há  as outras… as Pessoas da Nossa Vida. E são estas que,  aconteça o que acontecer, estão sempre à distância do mais simples sorriso.
Ana Amorim Dias

   

16.11.12

Pauzinhos chineses




   Sentei-me com o prato de sushi à frente. Peguei nos talheres para começar a comer e percebi que havia algo errado. Por mera preguiça ainda tentei  dar início à refeição, mas não consegui.  Tive que esperar um pouco  perante a deliciosa iguaria, para que me trouxessem os pauzinhos chineses e só então me entreguei a um prazer que com talheres normais não me teria sabido da mesma forma.
   Isto já se passou há dias e embora o sushi seja, tanto quanto sei, japonês,  o episódio voltou-me à lembrança quando li as notícias sobre o novo dirigente chinês.  Xi Jinping protagonizou, pela segunda vez na história recente da China, uma transição pacífica do poder. O novo presidente e chefe do partido comunista  foi também nomeado comandante das forças armadas. Ao que parece a esposa é uma cantora famosa e a filha estuda nos Estados Unidos mas, não sei porquê, nada disso me tranquiliza. 
    Também não percebo porque é que “levamos” com avalanches noticiosas sobre as eleições americanas e, em relação às chinesas, nos apresentam, em breves instantes, os factos já consumados.  No entanto esta observação é só um detalhe. O que estou hoje a debater comigo é o porquê do meu temor chinês!   Isto deve ter começado por culpa do Quino e da sua “Mafaldinha”, que eu tanto consumi na infância. Ou pode ser pela consciência de que aquela civilização de sólida cultura milenar e preparação genética para o trabalho ainda não se apoderou do Mundo simplesmente porque não quis.  Assusta-me o seu número. Assusta-me o seu poderio económico e capacidade ( com terríveis condições ) de produção.  Assusta-me o total sacrifício do interesse individual em prol do bem comum. Nenhuma das civilizações ocidentais está preparada para competir com algo daquela magnitude e, por isso mesmo, os resultados têm estado cada vez mais à vista. O que pensar de um país que, levando a  cabo a construção de uma barragem, tem capacidade para despejar e realojar nada mais nada menos que um milhão de pessoas? Assusta-me…
    E assusta-me a tal ponto que, há uns anos , até fiquei admirada comigo por ter conseguido passear sozinha pelas ruas de Chinatown em  Nova York… eu que já tinha “fugido” de uma loja de chineses em Vila Real de Santo António devido à forma agressiva como o dono estava a falar ao telefone!
   Sim, confesso-me hoje e aqui. Tenho medo da China, e concordo que a devemos deixar “dormir”. O mais possível. Só não sei é como é que devo reagir à minha impulsão de comer comida chinesa e japonesa … com pauzinhos!
Ana Amorim Dias
  

15.11.12

Para tudo fazer sentido



    Não sei quando é que isto começou, mas agora dou por mim a falar com a televisão.  Sei que quem lá está dentro não me vai ouvir nem responder, mas não consigo calar-me.
  O telejornal de ontem, por exemplo, além de me despertar  algumas reflexões,  arrancou-me várias observações.  Tentei não me exaltar demasiado e  compreender todas as “partes”, o que só se consegue se nos colocarmos na posição dos outros. 
   Dizia o senhor Primeiro Ministro que os portugueses têm sido muito corajosos; que têm enfrentado as  dificuldades com muita coragem…   - Coragem?  - Perguntei à televisão. -Coragem??? Coragem é outra coisa: é enfrentar o perigo por vontade própria,  não é passar fome devido a decisões políticas  dolosas, nem ser roubado à descarada para pagar dívidas que não se pediu para contrair. O povo português não é corajoso, é mártir, percebe? – Perguntei-lhe sem que me ouvisse. Mas depois olhei-o melhor e senti pena. Não queria estar no seu lugar. Tenho a leve ideia de que quando se instalou no poleiro já o país estava a naufragar à mão de todos os anteriores galos. Inspirou-me pena porque me fez lembrar aqueles advogados que sabem estar a negar graves  factos provados e conviver com isso diariamente é coisa que  deve causar doenças gravíssimas.
  Depois passaram as imagens da carga polícial sobre os manifestantes. Para que aquilo fizesse sentido tratei de me colocar nos dois lados  da escadaria.  Imaginei-me na manifestação. Em certas situações, as manifestações, mais que um direito, transmutam-se quase num dever.  Mas caso eu lá estivesse não teria a cara tapada. Caso eu lá estivesse, jamais atiraria pedras ou ofenderia os mesmos agentes de autoridade com quem conto para viver segura num estado de direito!  Não são eles os culpados do estado da Nação, pelo contrário,  merecem toda a nossa simpatia e respeito.  Caso eu lá estivesse, as pessoas que animalescamente assim procederam,  apenas estariam a comprometer a minha presença. De qualquer forma louvo quem lá estava,  a manifestar-se em paz, e permaneceu, mesmo tendo  que correr perigos e testemunhar momentos desnecessários.
   De seguida, e perante as nervosas declarações do porta voz das forças policiais,  repeti o exercício e imaginei-me um deles. Aqui as dificuldades foram maiores porque é-me intrínsecamente inconcebível imaginar-me a pertencer a uma estrutura hierárquica daquele calibre (a menos que estivesse eu no topo, claro).   Além do mais, quando se ferve em pouca água, muito dificilmente nos conseguimos visualizar a suportar hora e meia de provocações e agressões sem poder reagir. Só de imaginar o que eles deviam estara a sentir, até fiquei  eu própria com ganas de dar umas bastonadas.
   Convenhamos:  por mais vontade que se possa ter de esganar uns quantos políticos, alguém com o seu juízo perfeito, se sentiria seguro se a autoridade se demitisse do seu papel?  Estamos a falar de nobres homens que, também eles sacrificados mártires, ainda colocam os seus corpos entre o enraivecido povo e a mais vil classe que a humanidade gerou, para assim conseguirmos  manter alguma esperança de , quando a economia reagir, ainda vir a encontrar uma sociedade… que faça algum sentido.

Ana Amorim Dias

14.11.12

A “cuz”



   Se algum dia me virem por aí e eu estiver parada na rua, com a cabeça enfiada na mala,  à procura das chaves, isso só pode estar a acontecer por duas razões: ou estou mesmo a procurar as chaves ou estou a disfarçar o caso enquanto oiço alguma conversa inspiradora.
   Ontem de manhã aconteceu a segunda versão.
- …  ela já tinha noventa e seis anos mas até nunca foi de grandes doenças… - Dizia uma senhora de idade a outra.
- Pobrezinha. Vá lá que teve quem olhasse por ela, nós se calhar não teremos essa sorte… -
- É a vida… - Tornou a primeira.
   E, de repente, a vozinha infantil do pirralho que as acompanhava, soou: - A vida é uma “cuz”! – Exclamou convicto.
Mas a coisa não se ficou por ali porque as senhoras foram prontas no apoio da afirmação.
- Pois, meu querido, e todos a carregamos desde que nascemos! –
- E ás vezes é bem pesada! – secundou a outra.
   Nesse momento afastei-me. Já sabia que me tinham traumatizado por um bom tempo! Passei o resto do dia a repedir “uma cuz… a vida é uma cuz!” Não sei se fiquei mais escandalizada por ouvir um miúdo,  que nem três anos devia ter,  a proferir tal obscenidade  ou por o terem apoiado com tão veemente convicção.   Quem é que, no seu juízo perfeito, incute tal falácia num ser que devia ainda viver no paraíso sagrado da existência?  Como é que pode corromper assim uma infância?
De tanto repetir que a vida é uma “cuz”, percebi que teria de escrever sobre o tema, para o exorcizar de mim.
   A vida é mesmo uma “cuz” ou somos nós que assim a vemos? Todos temos que carregar a tal pesada “cuz” ou podemos escolher fazer com que seja de esferovite ou transportá-la num atrelado?  Se Jesus teve que enfrentar a “cuz” por nós, porque raios temos que a continuar a carregar?
   O assunto é delicado, mas penso que se resolve com um golpe de perspetiva. Se olharmos para as dificuldades e dores das nossas vidas como uma cruz que estamos condenados a carregar, é nisso mesmo que se transformam. Mas se os virmos como uma fonte de oportunidades, fortalecimentos,  aprendizagens e aperfeiçoamentos, as tais cruzes nada mais são que o complemento vitamínico da nossa sabedoria.
   Uma coisa é certa ( e isto percebi-o  esta manhã enquanto, com canções de rimas inventadas,  fiz os meus filhos rirem à gargalhada todo o caminho para a escola)  jamais a uma criança deve ser dito que a vida é uma “cuz”!
Ana Amorim Dias

13.11.12

Santíssimo Sacramento!



- Por aqui! –  Desviei-me do  percurso e comecei a subir a rua que estava à nossa esquerda.
- Mas por aqui porquê? –
- Sei lá eu! Por aqui porque sim!-
    Passados breves instantes percebi de novo a razão de seguir os meus impulsos. Espreitei para o interior de um restaurante que, tenho que  confessar, me deixou impressionada.  Uma placa, logo à  entrada, explicava a importância do edifício, mas o que mais me prendeu foi a soberba conjugação de bom gosto e requinte. 
Visitei todos os espaços do espaço. Pé ante pé, revencial e meditativa.  Caminhando como quem desliza num museu que é  em si mesmo, também, uma obra de arte.
- Posso ajudar? – Um jovem funcionário aproximou-se de nós.
- Obrigada. – Respondi.- Estamos só a ver, mas creio que viremos cá jantar daqui a pouco.
- E têm reserva?  -
- Não… É preciso? –
- Dêm-me um segundo enquanto verifico a agenda para hoje.  – Desapareceu e voltou em segundos.  – Penso que não deve haver problema, ainda há bastantes vagas. 
 Pensei que estivesse a usar de um pouco de bluff. Não estava a conseguir  imaginar que , a uma segunda feira,  a considerável capacidade do restaurante  ficasse lotada.
   Saí e voltei um pouco mais tarde.  O impecável staff já se atarefava em atenções aos clientes. Indicaram-nos mesa. Sentámo-nos e escolhemos o que iríamos comer, trocando algumas impressões baixinho. Foi então que o senhor que se  estava a encarregar de nós  se aproximou e, com uma simpatia sólida e discreta,  confirmou: - Então será o polvo à lagareiro e a espetada de tamboril e camarão, certo? –
- “ Santíssimo Sacramento!” – Pensei. – “ O staff é composto por agentes secretos!”.  E tal suposição acompanhou-me ao observá-los a trabalhar. O pefil e atitude de qualquer um deles, a par com o estilo dos clientes que foram enchendo completamente o espaço, fizeram-me acreditar que estava a jantar num filme.
  Não sou crítica de restaurantes, mas este merece mesmo que não me poupe às palavras!  Tudo no “Sacramento” do Chiado merece a nota máxima.  O edifício e a forma como está  mantido e sublimemente decorado; a apresentação das mesas e dos pratos; os odores e  sabores;  a temperatura do ar e a seleção musical. Tudo a conjugar-se para  a experiência gastronómica perfeita. 
   Passou a ser, definitivamente, um dos meus preferidos. Não posso deixar de o aconselhar e repetir. Porque é raro, muito raro mesmo, encontrar “pérolas”  tão perfeitas que a única alteração que eu faria seria no nome: acrescentava “santíssimo” a  “sacramento”.
Ana Amorim Dias
  





12.11.12

A omissa lista


   Sempre que me enviam currículos, leio-os com atenção.  Percorro as listas descritivas da formação, experiência profissional e outras capacitações, sempre na expetativa de encontrar a listagem dos pontos do Planeta já “tocados” pela pessoa em questão.
   Mas nunca me fizeram o gosto. Nunca ninguém me enviou o currículo com a lista que considero mais  importante. E o pior é que não entendo o porquê de se continuar a desvalorizar a formação mais considerável  que qualquer indivíduo pode ter.
    Pessoas viajadas são indiscutivelmente mais ricas do que as que permanecem  nos confinados limites geográficos do dia-a-dia comum. Quem viajou investiu. Investiu em si sob todos os pontos de vista possíveis. Quem viajou superou-se de alguma forma; quis mais; experimentou; sentiu; arriscou; aprendeu; evoluiu. Foi tocado por todos os locais que os seus pés calcorrearam e  voltou diferente, a olhar com novos olhos e a reagir aos estímulos com reações mais grandiosas.
   Continuo a receber currículos, sempre à espera da lista mais importante. Aquela que me pode revelar se estou perante alguém que me conseguirá surpreender  graças aos horizontes que já decidiu alargar.
    Porque quem mais viaja e se deixa tocar pelos locais que tocou, terá para sempre a vantagem de ser,  pessoal e profissionalmente, maior.
Ana Amorim Dias
  

9.11.12

Nevoeiro



  Entro com o carro por um nevoeiro cerrado.  – Nevoeiro é quando as nuvens caem ao chão… - deixo escapar, a meia voz.  No banco de trás, os miúdos riem-se da minha definição infantil. E voltam à conversa tranquila (espanto!) que estão a ter entre si, deixando-me entregue a dez quilómetros de conjeturas.
   O Pablo vai soando na aparelhagem do carro,  “ … me llaman loco por dejar tu recuerdo quemarme la piel…”. Não me deixo levar por “recuerdos” nostálgicos, mas chegam-me  ao pensamento claros episódios dos sonhos da madrugada. Um restaurante deslumbrante onde nunca tinha estado. Algumas pessoas à minha espera lá dentro. Sou muito bem atendida  por uma senhora e dois senhores que me aguardam à porta. Tiro a toalha que me envolve os cabelos molhados e entrego-a, com toda a naturalidade, a um dos homens. Sacudo a melena sobre os ombros semi-desnudos. Volto atrás. Dois euros de gorjeta ao simpático senhor. Será bastante? 
    Continuo a conduzir. Em piloto automático extremamente atento. “ Que raio, Ana… como é que arranjas estes sonhos?”. Trespasso as nuvens caídas no chão e penso que tal como o lugar delas não é ali, também a realidade se encontra alterada. O Mundo mudou. As escolhas que pareciam certas na minha juventude não fazem agora grande sentido. Um bom emprego. Um ordenado certo ao fim do mês. Segurança. O que os meus pais queriam para mim; o que todos os pais queriam para o futuro dos filhos, pertence a uma realidade que já é quase irreal. Segui outros caminhos bem mais arriscados. Em boa hora o fiz.
   Olho de frente para o nevoeiro. Olho para trás pelo retrovisor e observo as duas crianças a quem tenho que ensinar a realidade. Como os preparo para o futuro?  O lugar das nuvens não é só no céu. E o “certo” pode ser de uma incerteza gritante…  Digo-lhes para se nortearem só pela segurança ou para ousarem ser originalmente inventivos?  Digo-lhes que uma escolaridade sólida é o suficiente ou incito-os a aprender todos os truques da natureza e a saber viver dela? Digo-lhes que saber história, geografia e fórmulas matemáticas é mais importante que saber pescar, amassar pão, depenar uma galinha ou distinguir as ervas do campo que se podem comer?  Não sei. Por isso, e por via das dúvidas, decido que o imaginativo sonho desta noite e as nuvens caídas no chão são sinais.  Sinais da mudança dos tempos. Sinais de que as crianças de hoje têm que ter, mais  do que  conhecimentos teóricos, sabedorias pragmáticas e, acima de tudo, a noção de que talvez um  dia venham a precisar de algo que os adultos lhes estão sempre a querer amputar: a capacidade de usar a fantasia e a imaginação como ferramentas bem reais.
Ana Amorim Dias

7.11.12

Nomes



  - Olha para isto. – A minha tia passou-me o papel para as mãos, sem que eu o esperasse.
  Fiz como disse. Olhei. Li e reli para ter a certeza de que  estava a entender bem. Mariana Enriqueta Salvadora Concepción Cayetana Petra Esperanza Ignacia Cinta de la Santissima Trinidad  Romero y Rasco.
- Não pode ser, Concha! – Respondi-lhe,  depois do choque inicial.
- Pois… Estás tão espantada como eu fiquei quando me deram a certidão. Até pensei que se tivessem enganado na pessoa, mas não. Era este o nome da tua avó materna! –
   Fiquei logo com a sensação de ter sangue da realeza espanhola. Afinal que outra justificação poderia haver para a minha avó ter nada mais nada menos que treze nomes?
Mais tarde comentei com os meus filhos o nome da sua bisavó, ao que o João respondeu, praticamente sem pestanejar: - Porque é que ela tinha treze e eu só tenho três? -   Senti-lhe a indignação na voz e só soube responder-lhe: - Óh filho… assim é muito mais prático. –
  Mas, como é óbvio, não consegui impedir-me de me entregar às mais profundas conjeturas. Porque é que os pais desta avó,  que nunca cheguei a conhecer, a batizaram com tão rebuscada fórmula? Seria costume? Que tipo de afirmação, dedicatória ou tributo estavam a efetuar?  Não encontrei a resposta e talvez nunca a encontre, mas fiquei a pensar em como me chamaria se acaso me calhasse a (má?) sorte de ter que ter tantos nomes.
   Ana do Mar Lúcia Paixão Prazeres Lopes Deslumbrada das Palavras  Amorim  Amores dos Dias. Um pouco índio, mas seria este o meu nome!
   Deslumbrei-me com o nome desta avó que também escrevia. Deslumbrei-me como quase todos os dias consigo deslumbrar-me com algo. E reservei, como se reserva a massa do pão que amasso até estar pronto para entrar no forno a lenha. Reservei esta pequena estória até me chegar a questão que me fez partilhá-la hoje: e tu? Se tivesses treze nomes, como te chamarias?

Ana Amorim Dias

6.11.12

Nas barbas do Pai Natal




    Abri o mail da editora da revista. Dizia que a edição de Dezembro  não iria fugir ao clichê do Natal  e acrescentava que a abordagem do tema se deveria inclinar para o  reinventar da tradição.   
   Esfreguei as mãos de contentamento. Se durante o calor  a minha loucura é o mar, no Inverno tudo me  gira em torno da chegada do Pai Natal.  É como se a estação fria fosse um crescendo de excitação e expectativa até à madrugada de  25 de Dezembro e, depois disso, tudo se reduzisse a uma longa espera pelo regresso do calor e dos banhos de mar.  
   Mas voltemos ao tema de reinventar o Natal, algo que, com a atual crise, é de uma simplicidade gritante. Em vez de oferecer prendas a todas as pessoas que fazem parte das nossas vidas, podemos limitar-nos às crianças. Em vez de coisas caríssimas, podemos optar pelas criadas por nós ou por quem esteja a aproveitar a ocasião para revelar talentos esquecidos. Também podemos trocar os enfeites antigos com amigos ou familiares para não se comprarem novos; trocar o bacalhau por latas de atum e o bolo rei por pão de ló,  mas vou deixar estes detalhes para os meus colegas cronistas e falar agora do que realmente importa!
    A maneira mais incrível de reinventar o Natal não é para todos. Só quem tem um coração enorme, especial e de uma infantil inocência  pode ser capaz de abraçar esta encantadora aventura…. de acreditar no Pai Natal.  É isso mesmo, leram bem! Acreditar no Pai Natal é preciso.  Se formos capazes de nos entusiasmar com a sua chegada, conseguimos ouvir as suas gargalhadas,  os guizos das renas  e  o trenó a travar.  E só com o uso pleno desta capacidade  é que a tradição se reinventa e  a magia do Natal se volta a viver. Não se esqueçam que andamos há tempo demais armados em espertos , a não  conseguir vê-lo, mesmo nas barbas dele, e isto,  além de nos diminuir, faz de nós malcriadões.
   Por esta altura consigo ouvir os pensamentos de alguns de vós a ponderar que eu devia procurar ajuda psiquiátrica,  mas não se preocupem pois o Natal está quase aí …. e com ele os milagres que acontecem…. mesmo nas barbas do Pai Natal!
Ana Amorim Dias

  

5.11.12

Work your magic!



  Eu já desconfiava!  Já tinha fortes suspeitas que também pensava em forma escrita durante o enlevo do sono. Hoje ficou provado. As ideias, divagações e seus desenvolvimentos, também fervilham enquanto me encontro aninhada nos fortes braços de Morfeu.
   E então acordei. Ouvia ainda a voz do Gonçalo a repetir algo que me disse este Verão enquanto esperava que eu fizesse mais umas quantas caipirinhas para ele levar para as mesas:  - Vai, Ana,  work your magic! –
   Sei que “trabalho a minha magia” quando faço caipirinhas… e quando sorrio, e quando converso, e quando me entrego e viajo e penso e escrevo. Trabalho a minha magia como a trabalha toda a gende que está empolgada e  sintonizada naquilo que está a fazer. Mas porque raios  é que a magia não cobre a chegada do mail de uma editora capaz  a dizer que quer publicar as minhas obras em edições de alguns milhares em vez de apenas quinhentos livros? Porque raios é que as pessoas certas não me lêem sequer uma obra?  Viverei no sítio errado? Na altura errada? Não tenho os conhecimentos certos? Ou a magia não engloba tais campos?
   Continuo a acordar para mais um dia. Ponho música a tocar. Levanto-me. E enquanto me preparo e vou gerindo a correria matinal, acabo por perceber que para um escritor tudo o que pode importar é conseguir trabalhar a magia de continuar a escrever, emocionado e feliz. Work my  magic a fazer caipirinhas pode demorar breves instantes, mas a conseguir outras coisas… bem,  aí, acordada ou a dormir,  pode levar anos mas talvez acabe por produzir os seus efeitos.  
Ana Amorim Dias

2.11.12

Os caroços das bananas




    Durante um passeio pela Sicilia  houve um italiano que me contou uma história interessante a propósito das minhas adoradas alfarrobas. Não garanto a fidedignidade dos factos mas também nada me leva a crer que tenham sido inventados.
   Disse-me o tal senhor que, no tempo da segunda guerra mundial, era costume mitigar a fome às crianças com as ditas alfarrobas, fazendo crer aos catraios que estavam a comer bananas secas, para que gostassem mais.  Mas não se ficou por aqui e acrescentou que há uns tempos, contando a mesma estória a uma senhora de mais idade,  ela lhe respondeu: - Ah!! Agora é que entendo, finalmente, porque é que as bananas secas tinham caroços! –
   Gravei tal episódio porque me pareceram importantes estes caroços das bananas. No fundo e em termos amplos, todos já comemos, numa ou noutra altura da vida, bananas com caroços. Pode ter sido a crença de que a justiça era mesmo justa ou a convicção de que todas as pessoas são boas; pode ter sido a noção de imutabilidade da vida ou a certeza absoluta que que teríamos pais para sempre. E apesar de lá bem no fundo da nossa razão infantil sabermos que as bananas, mesmo que secas, não têm caroços, fomos acreditando que assim era, até ao dia das bombáticas revelações que nos confirmaram as suspeitas.
   E,  para quem aprecie metáforas, termino com a decisão que tomei: por mais que nunca me tenham dado alfarrobas a fazer-me acreditar que fossem bananas secas, come-las-ei, daqui para a frente, como se bananas secas fossem… bananas secas com caroços.
Ana Amorim Dias