(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

28.9.12

Qualidades e Defeitos


“ Socorro! Alguém me salve por favor!” – Oiço o pensamento a gritar dentro de mim enquanto o senhor continua a falar, muito convicto, sobre algo que já não tenho como recordar.
  Olho para ele em silêncio, na esperança de que não se aperceba da minha agonia. E ele olha para mim com intensidade, absolutamente absorto no seu discurso secante.
  Nesse momento começo a imaginar um pterodáctil a aproximar-se de nós e a levá-lo com as suas garras fortes. “ Um ataque de tosse também servia, mas não seria tão giro…” – penso.
  E ele continua a falar. E eu a temer que o seu monólogo se tenha que transformar em conversa com alguma pergunta sua que me obrigue a um “Hum, hum” acanhado.
  Já não olho para ele. Olho através dele e não vejo nada. Só o baile de pensamentos cómicos que me vão rodopiando cá dentro. “ Podia subir-lhe uma lagartixa pela perna…” e começo a rir imaginando-lhe os saltos. Ele gesticulava, empolgado com o assunto que eu não recordo por não ter ouvido palavra, mas pára de repente. Não entende o que me fez rir pois não me ouviu os pensamentos.
  Continuo sem perceber se esta minha faculdade é qualidade ou defeito.  Para os outros, aqueles que ao falar comigo falam com uma parede, talvez seja um defeito. Um daqueles defeitos grandes, feios e muito desrespeitosos. Mas para mim é qualidade: uma das  características que me são queridas e que refino com a idade, por  que me permitem manter a alma esvoaçante, infantil e fértil que tão boa companhia me faz.
Ana Amorim Dias
  

26.9.12

Bem à vista

 
    Já não sei onde é que li que as mulheres são mais consumidoras de gadgets que os homens.  Não tenho como comprovar que tal conclusão tenha algum fundo de verdade, mas há um brinquedo em particular que, embora não se possa considerar um gadget, é o santo graal que toda a  fémea ambiciona: o closet!
    Não estou a falar de um ou dois roupeiros espaçosos. Nada disso! O pináculo da satisfação material de uma mulher é, sem qualquer sombra de  dúvida,  um daqueles  quartos de vestir enormes  e organizados que aparecem nas revistas de decoração e nos programas do canal E! sobre as estrelas de Hollywood.
  Nós mulheres nunca temos nada para vestir pela simples razão de não possuirmos um espaço suficientemente amplo, atraente e digno para arrumar de forma solene os nossos parcos pertences.
   Pois é! Um closet resolveria metade dos nossos problemas. As fileiras de botas, sapatos e sandálias, em crescendos de cor e altura dos saltos; alas intermináveis de blusinhas penduradas sob uma luz indireta; os vestidos, todos juntos, do mais curto ao mais comprido; a zona das pulseiras, colares e brincos, próxima da cómoda das pinturas coroada com um espelho com lâmpadas a toda a volta…     E tudo à vista. Tudo bem à nossa vista para que o modelito do dia se formasse na nossa mente apenas com um breve olhar. Tudo bem à vista para que a entrada nesse santuário épico fosse como se chegassemos à gruta do Ali Bábá.
  No meu mundo ideal todas as mulheres teriam este compartimento. Neste utópico universo paralelo, todas as mulheres se sentiriam, no mínimo, como estrelas de cinema ou belas Deusas do Olimpo.
   Mas a realidade é bem diferente e como o que vamos acumulando não tem o espaço devido, acabamos por perder o rumo às coisas,  perdidas na profundeza  de armários que esticam até rebentar. E é neste ponto da reflexão que proponho a mim mesma um negócio: revirar os meus armários; sacar tudo cá para fora e deixar, bem à vista e bem à larga, as coisas de que realmente gosto. É que quando temos as nossas coisitas bem visíveis, damos-lhes muito mais uso.
   A verdade é só uma: com as roupagens  que me compõem ando a fazer isto há muito tempo… resta-me agora experimentar  com as roupas que uso por fora!
Ana Amorim Dias


25.9.12

Pensar?


   Não apoio a violência em circunstância alguma, mas  até compreendo que dois gajos andem à pazada por causa de uma mulher. Também não me é difícil conceber  que vizinhos se esmurrem por dois metros de terra ou que países entrem em guerra por territórios que ambos reclamam ser seus. Não me escandaliza que haja pessoas a exceder-se nos atos  para repôr direitos básicos que lhes foram roubados nem que claques desportivas se engalfinhem devido a resultados dúbios.   Mas continuo sem conseguir perceber o motivo que, ao longo da história,  mais guerras, injustiças e mortes tem gerado!   Por mais voltas que dê à questão, garanto que não percebo como é que as religiões têm trazido tanto mal ao Mundo!  É de tal forma grande a minha incrédula incompreensão que tenho que refrear os dedos para não escrever palavrões.
    Na minha ingénua maneira de encarar os factos, parece-me que as religiões deveriam servir, única e exclusivamente, para criar pontes entre o Homem e o Divino; para lhe enaltecer as qualidades e aprofundar a bondade, veracidade  e perfeição. Em última análise todas as religiões teriam que servir para potenciar a evolução da espécie humana. Mas para que é que as religiões têm servido?  Para fomentar guerras “santas”; para gerar ódios seculares e viscerais; para enfiar à força, guela abaixo dos homens, dogmas irrefutáveis, medos descabidos e promessas patológicas.
   Mas não se confundam, por favor, com a frieza destas palavras. Acredito no divino. Acredito em Deus, nos milagres e na divindade do Homem. Apenas já  vi e  pensei  o  suficiente para perceber que a obra das religiões na sua derradeira função de promover a evolução humana na direção do divino tem sido um redundante fracasso!  
  E de todas as culpas que as religiões têm, há um atentado  que é superior a todos os outros.  As religiões, com os seus dogmas chantagistas, têm retirado ao Homem a sua faculdade mais gritante: a capacidade ( obrigação?) de PENSAR.  Cada indivíduo que se permite prescindir da mais importante responsabilidade humana, que é pensar, está a cometer o mais grave atentado à humanidade. E fá-lo na cegueira irresponsável de seguir a carneirada, nessa obediência cega à religião que lhe foi, desde a nascença, impingida.
  Podem ser escandalosas, estas palavras. Podem ser uma blasfémia,  aos olhos de muitos. Mas não peço que deixem de frequentar os templos, de rezar ou de ser crentes. Só apelo a que pensem e comecem de uma vez  a experimentar o divino!
Ana Amorim Dias

24.9.12

Primeiras chuvas



    As primeiras chuvas da temporada apanharam-me no mar.    Fui à praia,  mais pela obstinada teimosia de quem se recusa a aceitar que vai estar uns meses sem entrar mar adentro, do que pela real vontade de lá estar.  O sol era uma impercetível mancha por detrás das nuvens espessas. E frio obrigou-me a envolver o corpo na toalha.
   Mas o mar revolto chamou-me aos gritos.  As ondas dançaram para mim, num bailado sedutor a que não sei resistir. A espuma  enfeitiçou-me   com o baixo golpe do seu cheiro ativo e, antes que me demovesse  o  cinzento escuro do céu,  lancei-me às labaredas salgadas da minha paixão.
  O escuro mar estava quente. Pelo menos senti que sim.  Mas quando se cavalgam as ondas com prancha,  a emoção cala o frio.  E aquela explosão de cinzento, a abraçar-me por baixo e a comprimir-me por cima, devolveu-me a consciência de estar bem viva. Não, não podia sentir frio. Naquele momento, na praia deserta, só existia eu. Eu na natureza. Eu em mim. Um gigante e assoberbado EU. Um  EU feliz, emocionado.  Sei que consegui parar o tempo ali. O tempo e o pensamento que, vencido, se rendeu à inércia  enquanto o corpo se colava à prancha deslizante.
Mas,  de quando em vez, nos intervalos do pasmo exultante em que me encontrava, a mente alvitra-me congeminações: - “ Como podem os outros perder isto?” ; “ Cum caneco! Aquela é enorme!” ;  “ Será que as outras pessoas se conseguem sentir assim?” ; “ Tenho que comprar um fato para fazer isto de Inverno” ; “ Uau… o céu está a ficar preto!”
  E a chuva começou a cair quando saí do mar com a minha prancha amarela. Andei sem pressas. Sem medo de me molhar. E ri-me, deixando algumas lágrimas rolar.
Ana Amorim Dias

23.9.12

Burros, inteligentes e espertos


Burros, inteligentes e espertos

    Tenho um fraquinho por pessoas pouco inteligentes.  Não estou a ser má, a sério que não: divirto-me a ouvi-las e a admirar a sua forma peculiarmente simples e limitada de encarar o mundo. Não tenho qualquer problema em entregar-lhes a minha confiança  porque sei que dificilmente me poderão lesar e tenho a ideia de que quem nasce mais abonado em burrice, normalmente tende a compensar tal  fraqueza  com uma inocência adocicada por laivos de infantilidade. Com quem é genuínamente burro aprendem-se coisas incríveis, como o espanto e a pureza de cada singela descoberta.
    Também tenho um fraquinho por pessoas muito inteligentes.  Os neurónios ligam-se-lhes com uma eficácia esplendorosa e normalmente limitam-se a colocar tais aptidões ao serviço dos seus geniais devaneios, atingindo amíúde estados em que se tornam capazes de fazer evoluir o mundo. Tendo a confiar nos génios pois não costumam fazer mal a ninguém, de tão embrenhados que se encontram no seu universo mental. Quando estamos perante alguém  provido de prodigiosa inteligência também podemos subliminar-nos se nos soubermos munir de atenção e sede de novos conhecimentos.
   Mas de quem eu mais gosto é dos espertos!  Há algo de desafiante no contacto direto com pessoas assim. Os espertos têm uma inteligência razoável regada com certa maldade que usam indiscriminadamente em prol do seu próprio proveito.  Não têm pudor em mentir com uma displicência tal que acreditam na verdade de cada falácia impingida e o seu maior orgulho é sentirem-se ilesos no alto do seu  nível mental que lhes segreda ao ouvido a garantia de levarem sempre a melhor.   Sim, com os espertos aprendemos lições impagáveis… mas só se tivermos inteligência suficiente para conseguir que nos considerem completamente burros.
Ana Amorim Dias
  
 
  

  

21.9.12

Feel immortal




    Atribuir frases e aforismos nem sempre é fácil, mas talvez seja  legítimo dar  a  Hemingway os créditos desta  pérola: “ For that moment when you are making love with a woman of true greatness you will feel immortal.” Ou então isto é apenas Ernest Heminguay by woody Allan. Não garanto nada. O tema de hoje não são os créditos e sim uma reflexão sobre o sumo que escorre desta oração.
    O sexo tem sido alvo de atentados incríveis. Por parte das religiões ( a essas volto um dia destes) e  da moral. Em última análise, por parte do Homem e da sua imensa estupidez.  Acredito nesta frase. Acredito que quando um homem faz amor com uma mulher grandiosa, chega a haver o momento em que se sente imortal: o fragmento de tempo em que transpõe a barreira do humano e roça na divindade.
   Quando um homem encontra uma mulher assim e conquista, mais que o corpo, toda a sua sua essência numa fusão inexplicável, ele torna-se mesmo num Deus imortal. Mesmo que só por momentos.  E ninguém me tira da ideia  que é  exatamente  isto que todos buscam sem saber. Muitas  vezes da forma errada, julgando que é na quantidade ou no mero contacto físico que tal sublimação se conquista. Mas não.  A imortalidade momentânea e  a supressão absoluta do medo da morte e da consciência de finitude só se atingem quando a grandiosidade feminina se entrega, para lá do corpo, com a própria essência. 
   É por isso que o sexo tem sido considerado algo feio; algo a ser castrado e  calado: porque é considerado perigoso que o Homem se transmute em Deus. Mesmo que só por momentos.
Ana Amorim Dias
 

Ganhar a vida




- És escritora? – Esta pergunta saiu sem espanto. Mas ele voltou ao ataque, desta vez meio incrédulo:  - Ganhas a vida a escrever??!? –
Fiquei calada. Muda. Seca de palavras. Respirei fundo três vezes e comecei a costurar a resposta.
“ Não. Claro que não. Casei com um gajo rico que me sustenta por isso faço o que me apetece.”   
Não era justo. Porque haveria  de mentir? Afinal a pergunta até é legítima.
“ Ganhar a vida a escrever?” podia eu responder com uma sonora gargalhada. E depois calava-me. A irónica risota seria, por si, a resposta.
Mas não sinto vontade. Nem de rir nem de ser irónica.
“ Não. Ganho a vida a fazer outras dez coisas diferentes; a trabalhar como uma doida em certas alturas para conseguir pagar as contas e guardar algum tempo para mim, para o que amo fazer.”
   Aqui estaria um pouco mais próxima da verdade. Mas ainda assim muito longe. Não seria justo. Tenho que ser verdadeira.
“ Sabes, rapaz? Sim, ganho a vida a escrever.  Mas não te confundas. Pago as contas com o fruto dos meus trabalhos que nada têm que ver com a escrita. E no entanto a vida, ganho-a  todos os dias… enquanto escrevo.”
Aí tens a resposta.
Ana Amorim Dias


20.9.12

Espartilhados no tempo



Mergulho na memória externa e começo a viagem ao passado.
Quem havia de dizer que a fotografia seria uma banalidade do dia a dia? As máquinas fotográficas abandonadas ao pó das gavetas e os  rolos que deixaram de fazer parte da vida há já tantos ,  são só alguns indícios de como os daguerreótipos se tornaram quase tão diários e presentes como as refeições que diariamente se tomam.
   Fotografias constantes. Prolixas. A comprovar cada momento. A servir de testemunho visual da pessoa que fomos. E do que vivemos.
Mergulho na memória externa e começo a abrir pastas. Relatos de cumplicidades. De festas. De sorrisos alegres ou de uma tristeza que ninguém soube ver.  Provas da existência quem já não está.  Documentos que atestam a veracidade de amizades que  não mais se abraçam. Texturas não palpáveis do que já foi real. Temperaturas distintas. Focagens dispersas.
  E lembranças. Muitas. Mais perenes e eternas que as imagens captadas. Memórias com cheiro, som e sabor. Com suspiros, carícias e promessas gemidas.
Mergulho nos álbuns ao som do “clic” das teclas. E vou desfolhando o passado que se rende ante o meu olhar pensativo: somos realmente quem ali se plasma? Ou quem ali mora é um fantasma de nós? Sentimos saudades de quem fomos? Sentirão os outros saudades, não de quem agora somos, mas de quem  assim sorria para a objetiva da máquina?
   Somos o produto,  sempre inacabado, da soma de tudo o que fazemos, dizemos, escolhemos? Ou uma sucessão de frames espartilhados no tempo?
Mergulho nas pastas,  repletas de fotos,  e revivo cada momento. Quem lá está não são fantasmas, são os pedaços da vida que fazem de nós quem somos.
Ana Amorim Dias

18.9.12

Sob a proteção do “Capitão Cueca”


- No dia em que vocês voltarem para a escola, eu vou dar uma festa! –
O Tomás olhou-me com o sorriso traquina que sempre antecede os seus comentários bem britânicos no humor:  - E não nos convidas?? –
  Nos últimos dias das férias grandes duvido muito que  houvesse algumas  mães  ainda imunes ao síndrome da  EVD ( Escola Volta Depressa! ) .   Eu, pelo menos, não tenho qualquer pudor em confessar as  ânsias da rápida chegada do dia de regresso às aulas e, no entanto, também confesso que ontem lhes senti a falta. Das correrrias, gritarias e acalmias dos dois. Lembrei-me daqueles dois sorrisos felizes que volta e meia se transmutam na implicância mútua que caracteriza a condição fraterna.
   Mas a escola dura o que dura e,  a meio da tarde,  já a quinta  se tinha transformado de novo num campo de doces e cómicas batalhas.  O João, depois do banho, tomou de assalto as minhas botas e transformou-se no “Capitão Cueca”… pouco depois de me ter revelado uma  “motícia” fantástica:  - Mãe! Fui eleito delegado de segurança da minha sala! –
  Agora olho para a fotografia que tirei ao “Capitão Cueca” e não me sobram dúvidas: a turma dele está mesmo muito bem entregue…
Ana Amorim Dias

17.9.12

O monstro das alfarrobas



- Ana!... –
Oiço a voz muito ao longe.
- Ana! –
Desço do alto mais  profundo  dos confins do meu sono.  
- Olha para a porta. Depressa! –
Pressinto a urgência. Manejo as pálpebras. Abro os olhos.
A porta do meu quarto dá diretamente para a rua. De Verão fica aberta de par em par. Olho para a rua e lá está ela, corpo na rua, cabeça cá dentro. Por momentos fico com a sensação de que mais uns segundos e acordaria com a Joaquina II a lamber-me os pés.
  O momento em que cruzamos aquele  olhar intenso dura muito pouco tempo, mas consigo interpretar o que me veio dizer com a sua expressividade quadrúpede de burra bem instalada na vida.
- Afasta-te do que é meu, sua monstra das alfarrobas! – Diz-me,  antes de se virar para continuar o seu dia. E eu fico ali, estendida nos meus aposentos invadidos pela recriminação contida no olhar de uma burra justiceira.  
- Realmente ela tem razão, Ana. Tu podes comer toda a comida humana que te apetecer…  porque  que é que tens de ir roubar as alfarrobas à burra e às éguas?  - Pensei.
   A verdade é que não sei.  Continuo em busca da resposta enquanto escrevo esta crónica… e vou ruminando uma maravilhosa alfarroba.
Ana Amorim Dias


16.9.12

O sumo da memória




     A menina atravessava o pomar todas as tardes. Caminhava pelo carreiro ensolarado e chegava em poucos minutos à casa da sua amiga. Sentavam-se no poial  de  pedra e cal  e  olhavam o campo enquanto contavam a vida uma à outra. O sol ia sulcando o céu e a menina ia seguindo a esteira das sombras, embalada pela companhia serena e fácil daquela amizade insuspeita…
  Hoje debati-me entre a vontade de continuar a ronronar nos lençóis ou ir ajudar uma amiga a fazer vinho. A Dona Irene, mulher forte do campo,  caminha manca e curvada pelo peso dos anos e de uma vida inteira de trabalho. Há dias confessei-lhe o meu desejo de relembrar como se faz o vinho caseiro. Convidou-me para lá ir esta manhã. Logo nesta manhã em  que,  já sabia, acordaria cansada.
  - Vá lá Ana, levanta-te… sabes que algo te espera! – Disse a mim mesma para me desagarrar do colchão.
E lá fui. Vi, perguntei, cheirei, senti.   Despejei  o mosto na prensa. Rodei. Rodei. Relembrei. Reaprendi.  Fotografei, claro. Como não? E vim-me embora mais rica. Venho sempre mais rica de todo o sítio onde vou. Enriquece-me sempre tudo aquilo que faço.
 E já no carro, como o líquido opaco e escuro que a prensa fez desprender, também uma memória  antiga, perdida nos confins do meu ser, se desagarrou das entranhas e voltou de novo à luz.
  A amiga com quem eu ia ter,  nas tardes dos meus Verões infantis, chama-se Emília. E eu dava-lhe a mão. A mesma mão que hoje rodou a prensa que desagarrou o sumo e trouxe à memória a lembrança daquelas tardes sem fim. Eu dava-lhe a mão de menina e sentia a sua mão de anciã. A Dona Emília tinha mais setenta anos que eu. Sim, pelo menos setenta. Vestia sempre de preto e andava curvada, amparada por uma bengala que era também os seus olhos.  Lembro-me que lhe descrevia o céu, as árvores e os insetos que pousavam perto. Descrevia-lhe tudo. O que via e o que imaginava ver.  Sei que usava as palavras para que ela pudesse ver de novo enquanto lhe segurava a mão. A mão sábia de anciã. E ela ria-se feliz com tudo o que eu lhe trazia. E eu só lhe trazia a  voz. E a minha mão na mão dela.
  Hoje fui rodar a prensa e ajudar uma amiga a fazer vinho caseiro. Mas a recompensa não foi a memória que me iluminou a manhã.  O mais sublime bálsamo foi perceber o valor verdadeiro que todas aquelas tardes tiveram na vida da doce Emília.   Na minha inocência de criança nunca o cheguei a saber.
  Por agora resta-me aguardar que a pipa faça o resto do trabalho, mas tenho a certeza que quando o provar, o meu mais sentido brinde irá para uma antiga amiga que via com as minhas palavras.
Ana Amorim Dias

14.9.12

A questão




    Habituei-me a ver o “gosto” dela na maior parte das crónicas que aqui publico. Hoje amanheci com uma mensagem sua. Dizia-me que todas as manhãs “me” lê e que essa leitura é uma espécie de  “vício” matinal que a conforta e deixa estática por uns momentos.
   Disse que ontem se lembrou de mim ao ouvir a frase “ser feliz ou fazer os outros felizes”, calculando que eu teria algo a dizer sobre o tema…
   Vejamos então se esta minha amiga virtual se enganou ou nem por isso.
   Poderia parecer lógico que se começasse pela  premissa,  quase instintiva, de que somos  felizes a fazer felizes os outros. No entanto esta afirmação tem tantos “mas” que nem sei por onde começar.
   É por isso que me vou cingir a um raciocínio muito fácil. Ora então vamos lá!
    Ninguém pode ser feliz a fazer felizes os outros… a menos que se faça feliz a si próprio primeiro. Não! Não é uma questão de egoísmo. É o pleno exercício da mais básica lógica. Ora pensem lá comigo: de que serve dar felicidade aos outros se isso nos trouxer a nós uma enorme tristeza? Como podemos dar alegria sem a sentir? Isso não é fazer os outros felizes, é passar por cima de nós mesmos e oferecer uma maçã linda por fora mas podre por dentro.  
   Creio que, ao contrário do que se pensa, devemos esforçar-nos até ao limite por estar ( e, por que não, ser? ) felizes. Nós em primeiro lugar. Porque a verdade é só uma: só podemos fazer feliz quem nos ama se estivermos também nós felizes.
   É claro que não posso terminar sem dizer que podemos sempre fazer muito feliz quem se está “nas tintas” para nós, mesmo sem estarmos felizes, mas isso já é outra história e não faz muito sentido.
Quanto a mim, meus caros, garanto-vos que sou bem feliz   ao conseguir,   por vezes,  trazer-vos a felicidade em palavras.
Ana Amorim Dias

13.9.12

O tudo do nada



 - Queres beber alguma coisa? –
- Não. Nada.  – Respondi.
- Nem cerveja?   -
Abanei a cabeça.
- E vinho tinto? –
- Já disse “nada”.  E nada inclui tudo! –
  Assim que me saiu que “nada inclui tudo”, apressei-me a  tomar nota da conversa pois fiquei com ideia  que daria pano para mangas.  Mas não. Não me chegou nenhuma teoria, alegoria ou analogia.  Só a conclusão de que há frases muito  estranhas que, por vezes, parecem fazer todo o sentido.
Ana Amorim Dias

12.9.12

A extensão mais sensual



   A extensão mais sensual de um homem continua a ser a sua mota.  Talvez por trazer reminiscências dos heróis a cavalo.  Mas convém clarificar a afirmação. Não é uma boa mota que torna um homem comum num ser desejável. Da mesma forma que não foi, durante séculos, o puro sangue do seu corsel a transformar o homem num   cavaleiro andante saído de um bom romance.  Não. Não é a mota que faz o homem. Da mesma maneira que não são as pinturas, roupas e adornos que fazem da mulher uma “bomba”. 
   O sexo feminino pode vestir roupas fantásticas,  jóias valiosíssimas e pinturas vistosas, mas tem que saber envergá-las e dominá-las, sob pena de ser apenas um cabide mal amanhado e estranho desprovido de qualquer encanto.  Com o sexo masculino passa-se o mesmo: ou o homem domina a máquina que lhe ronrona entre as pernas e se torna uno com ela numa ligação consistente, ou corre o sério risco de fazer figuras tristes e se estampar na curva seguinte.
  Adoro motas. E temo-as, claro. Talvez por isso nunca me tenha atrevido a guiá-las eu mesma. É dos poucos casos em que a atitude aventureira me fica em casa, guardada nalguma gaveta. Com as motas mantenho uma postura de donzela recatada. É um dos poucos casos em que me parece bem ser sempre o homem a comandar, levando-me abraçada atrás, por caminhos em que o vento me fustiga por fora com a mesma intensidade que a adrenalina  corre  cá dentro.
   Um passeio de mota  com ele a conduzir-me.  Algo tão poderoso,  tão intenso e ao mesmo tempo tão simples.   À volta só  vazio. O asfalto  a fugir por baixo e, à frente, as costas largas e fortes que só tenho que agarrar.
  A extensão mais sensual de um homem continua a ser a sua mota. Mas só se a dominar. Se souber ser uno com ela. Porque o mais apelativo atributo é a alma de selvagem… que sabe ser bem segura.
Ana Amorim Dias

11.9.12

Retorno à inocência



 
  Lembro-me perfeitamente do que fiz há onze anos. Recordo-me com impressionante nitidez em que curva guiava quando o telefone tocou e uma amiga me contou o que se estava a passar do outro lado do Atlântico.
    O primeiro pensamento foi para os meus pais que estavam na Turquia. Liguei-lhes para me certificar que  estavam bem, ainda  sem perceber nada do que se estava a passar. Ao longo do dia fui entendendo. Fomos entendo todos. 
   O soco no estômago da segura civilização ocidental foi sentido com a agonia da perda de uma inocência que até então ainda existia. No dia em que o meu pequeno buda fazia três meses de idade, percebi que há extremismos letais, perpetrados por homens doentes, que não deixam ninguém a salvo.  Nesse dia lamentei  os mortos. Mas o que chorei foi a perda da inocência.
   Cinco anos depois estive em Nova Iorque. Por toda a cidade  estavam ainda bem vivos os tributos e memoriais aos falecidos; bem como vivo estava um fumo invisível feito de uma dor que não passa.  No ground zero apenas parei o tempo suficiente para sentir a solenidade amarga do local  e vim-me embora a lamentar que as memórias brilhantes da cidade que nunca dorme tivessem perdido para sempre parte da sua alegria.
   Há uns meses um amigo trouxe-me uma prenda dessa cidade que adoro: a fotografia do meu primeiro romance tendo como pano de fundo a nova construção que se eleva no mesmo chão em que as gigantes gémeas tombaram.  Ao ver a imagem arrepiei-me de novo: há reconstruções lentas, feitas  ano após ano, tijolo após tijolo, página após página.  Há reconstruções que, por mais que não apaguem as enormes perdas, nos fazem perceber  que, tarde ou cedo, chega  sempre o  dia em que a inocência, lentamente, se  recomeça a conquistar.
Ana Amorim Dias
  

9.9.12

Luso abraço




   Pergunto-me se os portugueses continuarão a apreciar a arte.  Interrogo-me se conseguirão continuar a alegrar-se com a música ou a sorrir sem motivo. Será que as feridas pessoais de cada cidadão português chegarão a sarar algum dia?
   Não faz muito sentido enumerar  uma e outra vez os incontáveis rombos que este nosso navio luso tem no casco; nem os buracos que tem nas velas ou os mastros que estão quebrados. Da mesma forma que também já de pouco serve perguntar como foi que os timoneiros que o comandam e comandaram ao longo das últimas décadas puderam transformar Portugal neste país acidentado.  Como foi que se permitiu  a homens que nem remar sabiam que fossem os comandantes?  Quando é que começamos a adernar de forma tão acentuada sem que se tomassem medidas coerentes e  sem que houvesse um único  marinheiro capaz de segurar este leme?
   Não tenho resposta. Mas também devo ser  culpada pois sou adulta, racional e eleitora.  
    Mas o que realmente quero dizer é que há algo muito importante que ninguém pode esquecer:  nós não somos só um país, somos uma nação! E o bem mais valioso deste navio metafórico são os seus Homens.
    Além de um país pacífico, de belas paisagens, monumentos  e tradições seculares, somos uma equipa fantástica de pessoas boas e corajosas.    Somos muito  mais do que uma soma de sofredores tolerantes: somos a tripulação em apuros de navio que foi contra as rochas.  Somos todos  marinheiros,  de bravo gene  ancestral, capazes de estóicos feitos.  E parece que chegou a hora de mostrarmos  de novo o valor; de nos refazermos com  recurso à nossa astúcia,  aos nossos inventivos recursos e  à nossa condição de eternos conquistadores.
     Seria bom unir-nos mais ainda, enquanto marinheiros deste barco, com demostrações de altruismo e mútuo apoio, enquanto tentamos avaliar os estragos e reparar o navio.   Seria bom que, enquanto tentamos sobreviver aos ferimentos pessoais, tentássemos simultaneamente trazer de novo à vida o orgulho de ser Português, num sentimento  coletivo de abraço a tudo o que de bom corre no nosso lusitano sangue.
  Seria bom que, apesar de toda a preocupação, angústia, injustiça e perda, mantivéssemos  a capacidade de continuar a transmitir esperança aos mais novos; a capacidade de apreciar a arte,  de nos alegrarmos  com a música  e de  sorrir sem motivo… quanto mais não seja uns aos outros.
Um forte abraço a todos,
Ana Amorim Dias

8.9.12

O meu iphone e eu



    A relação que mantenho com o meu iphone tem sido como um daqueles enamoramentos que  o tempo e a convivência transformam em paixão.
   Primeiro fomos apresentados por uma amiga comum. Depois, ao reconhecer-lhe os encantos, comecei a desejá-lo e, passado algum tempo, acabei por conquistá-lo.  O relacionamento começou por ser frio e algo distante;  passou por  fases  de reconhecimento e descoberta e evoluiu para algo belo e cada vez mais consistente.
    Estou nesta relação há mais tempo do que duram muitos casamentos hoje em dia e orgulho-me por continuar a explorar e a conhecer cada vez melhor este meu companheiro fiel.   A relação tem crescido,  em bonança e intensidade, devido a algo indispensável a qualquer relacionamento que se queira sólido:  tempo e dedicação.
   Com tempo e dedicação descobri novas aplicações, atualizações e funcionalidades e acabei por ficar a pensar que são estes dois fatores que fazem tudo funcionar de  outra maneira. Estou mesmo convencida que, nas relações entre duas pessoas, por mais que a rotina  tente esbater a paixão, ela não conseguirá  levar a melhor se se  souber dedicar tempo  à  descoberta de todos os aplicativos e funcionalidades com que a vida atualiza constantemente cada  pessoa .
Ana Amorim Dias
   

6.9.12

Pata Negra




     As papilas gustativas  são uma das grandes fontes de prazer com que fomos abençoados.  É claro que os nossos antepassados mais distantes se alimentavam mais por  pura necessidade que por aspirações gourmet.  Por isso talvez se possa dizer que esta mudança foi uma espécie de upgrade corporal da humanidade instalado ao longo dos  milénios.    
    Não sou perita na história da culinária e da alimentação mas penso que não erro muito ao afirmar que o palato humano mudou quase tanto como a própria vida das pessoas.  Se calhar a carne em cima do fogo está para as cavernas como a cozinha molecular está para as casas inteligentes.  Sim, é isso mesmo:  os produtos recolhidos da natureza   e ingeridos  sem transformação estão para  as vestes  de peles de animais como o caviar está para a internet!  
  Diz-se que um dos requisitos para se ser um fabuloso Chef é ter o palato bem afinado. Vejo-me obrigada a concordar.  Como se pode criar o sublime sem o saber apreciar?  E é aqui que me travo. Como me travei ontem para não devorar sozinha a dose de pata negra que me colocaram à frente.
   Da mesma forma que não consigo escolher a viagem predileta também sou incapaz de me decidir por uma comida preferida. Contudo este presunto seria um muito bom candidato.   Tem que ser de porco preto e alimentado só a bolotas. O tempo e a salga da sua cura têm que ser feitos por casas com experiência secular. Os locais onde se precessa esta alquimia têm que cumprir requisitos tão específicos como estar construídos com entradas de ar na direção certa dos únicos ventos  que interessam (pelos menos assim me foi já explicado).
   De cada vez que este soberbo manjar se me derrete sobre a língua, volto  ao céu da minha boca:   impludo num prazer  bem carnal  e vejo-me compelida  a agradecer o upgrade gustativo deste tempo em estou a existir.
Ana Amorim Dias

5.9.12

A melhor viagem



       Às vezes perguntam-me  qual foi a melhor viagem da minha vida. Para conseguir responder teria que colocar de volta uma grande quantidade de questões:  Sozinha ou acompanhada? De natureza ou citadina? De aventura ou de descanso? Desportiva ou cultural?  
   A verdade é crua e simples:  não recordo nenhuma como sendo a preferida.  Todas até agora tiveram o seu valor e o seu tempo. Todas se revestiram de um encanto muito próprio feito de paisagens, monumentos, cheiros e sabores. Enriqueci,  em cada diferente destino, com  estórias brilhantes, memórias fabulosas e muitos novos amigos. Cresci  com o que os locais me deram e com o que lá descobri sobre mim.
   Quando se pergunta a alguém qual foi a sua melhor viagem talvez não se saiba que todas têm os seus obstáculos, perigos e desconfortos,  que há que saber tourear com humor.  Penso nisto agora, enquanto planeio a próxima viagem, porque percebo que a melhor viagem de todas acaba por ser sempre a que se vai fazer a seguir.
   Ana Amorim Dias

4.9.12

A receita




     Não há receita infalível para educar os filhos.  Não é justo: não há manual de intruções!  É que nem sequer um folhetozinho informativo com algumas dicas básicas.  Quando nos tornamos pais não fazemos mesmo a mínima ideia que a verdadeira aventura das nossas vidas acabou de começar.
    O que é afinal, educar uma criança para a vida?  Como se prepara um/a  menino/a para ser um/a adulto/a   feliz, decidido/a, inteligente e honrado/a?    Os pais  podem ter uma educação esmerada, uma cultura sólida e uma polidez invejável ; podem  ter um caráter nobre e uma força de vontade imaculada e,  ainda assim,  não estar preparados para o constante desafio que é acompanhar  estas pessoas pequeninas até se tornarem grandes indivíduos autónomos.  
   Não me faz confusão nenhuma que se eduquem  dois  (ou mais)   filhos da mesma exata maneira e eles tomem  rumos muito diferentes, mas não consigo conceber que haja pais que, perante os vários filhos,  tenham vários pesos e diferentes medidas.
   Sou mãe há dez anos e quase três meses e duplamente mãe há sete anos e tal. O que é que aprendi nestes surpreendentes anos?  Que não devo esperar que sejam iguais a mim e que não devo tentar moldá-los contra a sua essência .   Aprendi que  cada dia pode ser uma sucessão de canseiras, patifarias e raspanetes ou  pode ser simplesmente divino e repleto de ensinamentos.    Mas a mais importante aprendizagem foi perceber que  a soma das atitudes educativas    de  um progenitor  não tem que ser   férreamente imutável.   O ato de educar, desde os primeiros dias até bem depois do abandono do ninho, é um arame preso entre duas montanhas, que se vai percorrendo, pé ante pé, sem qualquer rede por baixo.   Temos que tatear o arame, sentir os humores do vento, ter uma fé enorme neles e  confiar no instinto.
   Educar é saber ralhar e conseguir aplaudir. Mas por vezes também é afagar quando era para se ralhar e ralhar quando era suposto aplaudir, se acaso tiverem capacidades para mais.  Educar é aprender a  deixar o outro ser ; é vergar um pouco a crista aos frangos sem nunca lhes tentar domar  a raça de puros sangues selvagens.   Educar é mostrar a diferença entre bem e mal; verdade e mentira; dinheiro e valor; prazer e suor.   É ensinar a acalmar os defeitos e a realçar as virtudes. Educar é confiar e transmitir confiança.
   Mas, por mais voltas que  dê à questão, continuo a dizer que a receita de  educar talvez seja, simplesmente,  acompanhá-los  a  aprender a ser quem são.
Ana Amorim Dias

3.9.12

O colar genético


    Sou fascinada por colares únicos feitos pelas mãos hábeis dos próprios artesãos que os vendem em feiras, mercados ou simples bancas na rua despontadas.  Encanta-me conhecer quem faz o que trago ao peito,  para estar bem segura da riqueza das peças, porque cada objeto que requer arte na sua feitura fica impregnado da energia de quem o cria; fica com um valor que transcende a matéria e a beleza.  
  É por isso que grande parte dos meus colares tem uma estória, mas vou-vos contar apenas a mais recente.
   No domingo, último dia dos Medievais de Castro Marim, tive finalmente  tempo para, pela primeira  vez este ano,  vaguear pelas ruelas em busca de algum tesouro. Detive-me em algumas bancas de ornamentos, mas em outras, as do produto industrializado, nem sequer parei. A certa altura os olhos prenderam-se a um colar prateado com uma pedra azul, pendurado numa minuscula bancada que era também o atelier do artista moreno que me atendeu em tronco nu. Falamos um pouco. Era de Madrid, o rapaz. Tem amigos em todo o mundo, que foi fazendo no seu jeito acertadamente errante de levar a vida.
 - Esta pedra deve ser usada junto à garganta…  - Disse-me – Melhora a voz e a eloquência, sabe?  
  Eu ri-me. Claro. Tinha que ser.  
Não trazia dinheiro suficiente no bolso das calças e disse-lhe que voltava em pouco tempo. Sorriu-me em concordância: também ele sabia que aquele colar era meu.
  Mas a parte mais gira desta pequena estória não é, de todo, aquilo que já contei e sim  o que ainda aí vem.
   Quando fui buscar o colar, levei o meu filho mais velho comigo. O madrileno das rastas olhou para o Tomás e  disse:  - Este rapaz já cá veio ontem, e perguntou-me o preço do seu colar. –
- Pois foi, mãe. É o mais bonito de todos e tive a certeza que era o que escolherias.  
Abracei o meu filho enquanto o moreno artesão me talhava o colar à medida do pescoço.
“ De todas as bancas de colares ele acertou na correta e de todos os colares que aqui há, soube escolher o meu…” pensei, embevecida.  
  Será que o sentido estético se pega em dez anos e dois meses de vida? Será que ele é apenas um menino atento aos gostos da mãe? Ou será algo mais? Creio que é algo mais… e  que o meu gosto mais íntimo lhe foi transmitido nos genes.
Ana Amorim Dias